Nos idos de 1971, quando era o manda-chuva da área econômica, o então ministro da Fazenda Delfim Netto, numa entrevista coletiva, perguntado pelo autor destas linhas sobre o que o governo pretendia fazer diante das notícias de que as políticas do Polocentro e Polonoroeste já provocavam intenso desmatamento em Mato Grosso e Rondônia, respondeu: "Nada. Você está querendo inverter a ordem dos fatores; primeiro vem o faroeste, só depois é que chega o xerife." Deu no que deu. Na semana passada, num simpósio em Goiânia, deu ele resposta parecida, ao se manifestar contra um zoneamento ecológico-econômico para a expansão da cana-de-açúcar destinada à produção de etanol; primeiro, disse ele, deve vir a "regulação pelo mercado".
Curiosamente, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, que poucos dias antes, em depoimento na Câmara dos Deputados, se manifestara a favor de que o zoneamento proibisse a expansão da cana na Amazônia e no Pantanal, na semana passada afirmou que o zoneamento previsto para agosto de 2008 (quando a maior parte da expansão já terá ocorrido) "deverá não apenas permitir como incentivar o plantio em áreas já degradadas ou devastadas da Amazônia". E não só citou como adequadas áreas de pastagem em Roraima, como disse que a essa expansão será oferecida isenção de impostos e contribuições. Dias depois, foi contraditado pela ministra do Meio Ambiente.
Seria interessante que o ministro da Agricultura demonstrasse que estruturas serão capazes da fiscalização que mencionou e que até hoje não funcionaram. Capazes de impedir a expansão para outras áreas, as migrações de trabalhadores, a pressão por infra-estruturas de transportes e sociais, a reivindicação de alcooldutos, etc. E, na verdade, a expansão da cana em certas áreas da Amazônia já está ocorrendo (O Globo, 29/7): segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a colheita de cana ali já passou na última safra de 17,6 milhões para 19,3 milhões de toneladas, graças ao aumento em vários Estados (AM, PA, MA, TO, RO, MT). Em Mato Grosso, cresceu 10%; no Tocantins, 13%; no Amazonas, 8%. Com isso, a safra amazônica já representa quase 5% da safra brasileira, de 400 milhões de toneladas.
Em seu discurso da semana passada na ONU, quando se referiu ao zoneamento, o presidente Lula disse que a cana só ocupa 1% da área agricultável do País - e o jornalista Marcelo Leite lembrou (Folha de S.Paulo, 26/9) que essa é a área agricultável total; se se considerar apenas a área já cultivada no País, a cana representará uns 10%.
A produção de etanol já está sob ataque em vários fronts, o mais importante deles a ONU, onde o relator especial para o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, propôs uma moratória de cinco anos na expansão do etanol derivado da cana, do milho e outras fontes, para que não cresça o problema da alimentação no mundo. É uma tese que o presidente brasileiro tem refutado, dizendo que o problema da fome decorre da concentração da renda no mundo, não da falta de alimentos. E ainda lembrando que o etanol já evitou no Brasil a emissão de 644 milhões de toneladas de dióxido de carbono.
E nesse ponto se entra mais diretamente na questão das mudanças climáticas. O presidente Lula, ao propor na ONU a realização da Rio + 20, na qual se avaliariam os resultados no mundo duas décadas depois da reunião do Rio de Janeiro em que foi aprovada a Convenção do Clima, disse que "não haverá solução para a humanidade" se não forem mudadas as matrizes energéticas no mundo e os atuais padrões globais de produção e consumo. É verdade, pelo que dizem hoje praticamente todos os estudos. Mas haverá acordo quanto aos caminhos na próxima reunião da convenção, em dezembro (Bali, na Indonésia)? O embaixador especial da ONU, o ex-presidente do Chile Ricardo Lagos, acha que o acordo acontecerá. E que o discurso de Lula "traz nas entrelinhas o reconhecimento de que os países em desenvolvimento aceitarão um acordo que estabeleça metas para todos os países, eles incluídos" - o que não tem acontecido até aqui.
Acontecerá mesmo? Na ONU, o presidente brasileiro disse ser a favor da manutenção do Protocolo de Kyoto, que expira em 2012. E o presidente da França, Nicolas Sarkozy, afirmou que todos os países precisam comprometer-se a reduzir suas emissões em 50% até 2050. Na mesma semana, entretanto, o presidente dos EUA deixou claro que seu país não aceitará metas obrigatórias: "Cada país deve definir seus métodos de combate à poluição, sem comprometer o crescimento econômico." E não aceitará nenhum acordo que não defina as obrigações dos chamados países emergentes (China, Brasil, Índia, México, África do Sul). Por essa rota da não-aceitação de metas obrigatórias, os emergentes acabam justificando os EUA e estes justificam os emergentes. No fundo, os EUA continuam confiando em que viabilizarão tecnologias de seqüestro de carbono no fundo de antigos campos de petróleo e no fundo dos oceanos, assim como a utilização de hidrogênio como combustível. E apostando que essas e outras tecnologias lhes permitirão manter a supremacia econômica e política no mundo.
Haverá tempo? As notícias dos desastres climáticos e correlatas são a cada dia mais graves, inclusive no Brasil: seca sem precedentes no Centro-Oeste, perda de mais de 20% na safra de café, recrudescimento das queimadas e do desmatamento na Amazônia, previsão do Inpe de que a desertificação no semi-árido atingirá 400 mil quilômetros quadrados, seguradoras brasileiras pedindo um fundo anticatástrofes (coluna de Sônia Racy, 28/9) para cobrir prejuízos com quebras de safras. E o degelo no Ártico aumentando este ano em mais de 1 milhão de quilômetros quadrados.
Teremos juízo em dezembro, em Bali?
P. S. - Depois de escrito este artigo, o ministro da Agricultura voltou a se desdizer quanto à cana na Amazônia.
Washington Novaes é jornalista
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