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Opinião

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político. Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.

As cenas não deixam dúvidas: grupos de traficantes e milicianos fazem treinamento de guerrilha em um dos maiores conjuntos comunitários do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré. As imagens, captadas por drones e mostradas no programa Fantástico, da TV Globo, mostram pessoas aprendendo a se locomover, portando armas de grande porte, algumas capazes de derrubar aviões.

O Rio de Janeiro é o mais vistoso e bonito cartão postal do Brasil (desculpem os leitores, não me refiro às paisagens belíssimas dos outros territórios brasileiros, mas ao postal que remete imediatamente ao RJ). Ao correr das últimas décadas, a imagem de Cristo, no Corcovado, não mitiga a visão do espaço mais identificado com gangues, tráfico de drogas, balas perdidas, morte de crianças, milícias, guerra entre facções. Não tem sido fácil o combate à criminalidade no Rio. Há um imenso poderio no topo dos morros, onde os criminosos formam seu “Estado informal”.  Espraia-se uma cultura de ilegalidade.

Analisemos. O poder informal, o da criminalidade, das máfias criminosas, desafia o poder formal do Estado. A coletividade se sente insegura. Os governos não têm tido condições de desbaratar os bandos milicianos que se estabelecem à margem da lei e da ordem. E que se expandem no arco das democracias.

Assim, aflora a questão central descrita por Norberto Bobbio, no seu clássico “O Futuro da Democracia”: a eliminação do poder invisível, uma das promessas não cumpridas da democracia. A criminalidade assola a Humanidade. O poder informal age nas entranhas da administração pública, aqui e alhures, “peitando” a estrutura formal de mando.

Como nasce e cresce tal mazela? As máfias agem nas sombras do Estado, difíceis de serem completamente mapeadas. É como cobra de duas cabeças. Corta-se uma, a outra entra em ação. Nasceu no intestino dos Estados absolutos, onde as decisões eram tomadas pelos arcana imperii, autoridades ocultas que se amparavam no direito de avocar grandes decisões políticas, encobrindo suas manobras e evitando a transparência do poder. Nas ditaduras, o esconderijo firma-se como um dos eixos do poder.

Ora, um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicização dos atos governamentais, forma de controle dos limites do poder estatuído. No absolutismo, o princípio é: o que é lícito ao Estado não é lícito aos cidadãos.

As democracias modernas, ditas representativas, conservam mazelas do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preservação de oligarquias e a consequente extensão das redes invisíveis de poder.

Os malefícios gerados pelas distorções do sistema se assemelham ao efeito-espuma. Os fenômenos se expandem e criam nova modelagem de ilegalidade, gerando uma aética nas relações políticas, fomentando o clientelismo, impulsionando o voto fisiológico e, como resultante, a apatia das massas. Que se tornam silentes e medrosas. As taxas de credibilidade na política e nos governantes decrescem, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam e o impacto se faz presente no atraso da modernização política e social. A civilização não avança no ritmo desejado.

As reformas que se pretendem promover nos sistemas administrativo, judiciário, tributário e político não propiciam, sob essa moldura, a extinção dos vícios que fragilizam a democracia.

O fato é que iremos conviver, por muito tempo, com o poder invisível e suas nefastas consequências. É triste constatar que os nossos índices educacionais puxam o país para o caminho do atraso. A educação é a locomotiva que pode assegurar a uma Nação seu lugar no painel do progresso. Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos são aqueles de preferência dos governantes, mas a democracia necessita de cidadãos ativos, conscientes, participativos.

É o que John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, chama de cidadania ativa, um valor umbilicalmente ligado à educação. Não adianta fazer reforma política - mudar sistema de voto, de representação, exigir fidelidade partidária, conferir aos partidos densidade doutrinária - se os súditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim. A educação para a cidadania é, infelizmente, outra promessa não cumprida pela democracia. 

Em suma, o Brasil somente sairá da era das grandes necessidades em que se encontra, quando o grau de cidadania atingir índices de elevação educacional. Quando todos os brasileiros estiverem comendo do mesmo prato cultural e educacional, inseridos no banquete da maior igualdade social, suas mazelas serão gradativamente eliminadas com doses de racionalidade, consciência política, respeito aos contrários e ética. Nesse momento, os braços de Cristo no Corcovado serão associados a um país mais justo, harmônico e solidário.

*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.