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Foto: Divulgação

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Estudos realizados com agricultores familiares do Vale do Juruá, no Estado do Acre, confirmaram que a farinha de mandioca produzida na região, conhecida como farinha de Cruzeiro do Sul, possui qualidade e características diferenciadas devido ao processo tradicional de fabricação. Esse conhecimento científico subsidiou a concessão do registro de Indicação Geográfica para o produto, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). O selo garante a origem, valoriza o produto no mercado e beneficia mais de duas mil famílias rurais.

A produção de farinha de mandioca é a principal atividade econômica do Juruá, região formada pelos municípios de Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Valter, Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul, cidade que emprestou nome ao produto. Apreciada por consumidores de Norte a Sul do País, a farinha Cruzeiro do Sul ganhou fama no mercado e despertou o interesse da Ciência. Durante dez anos a Embrapa, em parceria com Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e outras instituições governamentais acreanas, atuou em pesquisas sobre a qualidade e caracterização do produto, para auxiliar os produtores rurais no processo de obtenção do selo Indicação de Procedência.

Os estudos, conduzidos entre 2005 e 2015, envolveram  identificação das etapas do processo produtivo, caracterização física e química da farinha, classificação comercial do produto, mapeamento dos locais de produção, delimitação da área geográfica de ocorrência da atividade e confirmação de vínculos entre o modo de fabricação e o lugar de origem. Os resultados mostraram que a farinha de Cruzeiro do Sul é produzida de forma artesanal, com base em práticas tradicionais que vêm passando de geração para geração, há mais de 100 anos.

“Esse saber fazer particular, traduzido no zelo e dedicação dos agricultores nas diferentes fases do processamento da mandioca, associado ao uso de variedades tradicionais, plantadas desde a época de seus antepassados, confere qualidade, crocância e sabor únicos ao produto”, destaca a pesquisadora da Embrapa Acre Joana Souza, uma das coordenadoras dos estudos.

Mapa da produção

A forma mais conhecida de aproveitamento da mandioca (Manihot esculenta) para consumo humano é a farinha, alimento que faz parte da dieta de grande parte da população do Brasil e de outros países, como Nigéria e República Democrática do Congo, recordistas mundiais na produção de mandioca. Fonte de energia, fibras, vitaminas e minerais (potássio, cálcio, fósforo e ferro), a farinha de mandioca é consumida de diversas formas, da tradicional farofa a pratos típicos regionais. A região Norte apresenta o maior consumo per capita familiar do produto, com 23,5 quilos/ano, seguida do Nordeste, com 9,7 quilos/ano, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No Acre, a farinha de mandioca é processada em pequenas unidades de produção, denominadas casas de farinha, com uso de matéria-prima e mão de obra exclusivas da agricultura familiar. Para conhecer detalhes desse trabalho no Vale do Juruá, pesquisadores da Embrapa e técnicos da Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (Seaprof) percorreram os cinco municípios da região e georreferenciaram 904 casas de farinha, acompanhando as diferentes fases do processo produtivo. Joana Souza explica que esse trabalho permitiu a elaboração do Mapa da Produção de Farinha do Juruá, documento que comprovou a abrangência geográfica da atividade na região. Além disso, ajudou a confirmar a influência do modo de fabricação nas características da farinha de Cruzeiro do Sul.

O conhecimento sobre o perfil da produção de farinha no Vale do Juruá também serviu de base para novos estudos, incluindo a definição de um conjunto de Boas Práticas de Fabricação da farinha de Cruzeiro do Sul. “Percebemos que os agricultores executam o mesmo processo de produção, mas seguiam critérios diferentes na execução de cada fase. Traçamos um fluxograma de trabalho, com orientações técnicas para as dez etapas de processamento da mandioca, do arranquio das raízes no campo à embalagem e transporte da farinha. Entre os ganhos mais significativos está a definição do tempo de prensagem da massa, entre 8 e 12 horas, da temperatura do forno para secagem, em torno de 110ºC, e os tipos de tostagem da farinha. Esses critérios, aliados ao conhecimento tradicional, ajudam a promover uniformidade ao processo produtivo, reduzem esforços e garantem mais qualidade ao produto”, afirma a pesquisadora.

Variabilidade da farinha

Entre os requisitos estabelecidos pela legislação brasileira para definição da qualidade de um produto alimentício destacam-se o seu valor nutricional, aspectos organolépticos (sabor, aroma, textura, cor), condições de transporte e conservação, características físicas e químicas e índices microbiológicos. Para comprovar a adequação da farinha de Cruzeiro do Sul ao padrão de qualidade estabelecido pelo Mapa, foram avaliadas amostras colhidas nos cinco municípios da região, com foco na caracterização química do produto.

Segundo a pesquisadora da Embrapa Acre Virgínia Álvares, os fatores que mais influenciam a qualidade da farinha de mandioca são os teores de umidade e acidez do produto, características que estão relacionadas às etapas de prensagem e tostagem. Percentuais elevados de umidade na farinha favorecem o desenvolvimento de microrganismos e reduzem a sua vida de prateleira. Já a acidez altera o aroma e sabor, atributos essenciais para a aceitação do produto pelo consumidor. Quanto mais tempo a massa permanecer na prensa, maior será o teor de acidez da farinha, devido ao processo de fermentação.  

“A farinha de Cruzeiro do Sul apresenta grande variabilidade na sua caracterização química, mas os índices de umidade, acidez, teores de cinzas e outros elementos que determinam a qualidade do produto atendem plenamente aos critérios previstos na legislação. Características como os teores proteicos dessa farinha podem ter relação com o tipo de cultivar utilizado, entretanto, os percentuais de umidade e acidez são influenciados exclusivamente pelo processo de fabricação. Como os agricultores da região não utilizam equipamentos de medição, é preciso muita habilidade e experiência para determinar o tempo exato de prensagem da massa, a temperatura ideal do forno e o ponto de tostagem”, esclarece a pesquisadora.

Classificação
O atual Regulamento Técnico do Mapa classifica a farinha de mandioca em três grupos: farinha Seca, farinha D´água e Bijusada, considerando o processo de fabricação e características físicas e químicas do produto. Quanto à granulometria, aspecto que também é requisito para a sua qualidade, pode ser dos tipos fina, média e grossa. As pesquisas para caracterização física da farinha de Cruzeiro do Sul identificaram uma tendência de se produzir uma farinha mais grossa na região.

Segundo Virgínia Álvares, esse tipo de farinha Seca, com maior granulometria, não estava previsto na legislação. Por causa dessa limitação nos critérios oficiais de classificação, 75,9% das amostras da farinha de Cruzeiro do Sul analisadas foram classificadas como farinha Bijusada (tipo de farinha flocada), 17% como Grossa e 7,1% como farinha Média. “Essa classificação não correspondia às reais características físicas do produto e gerava limitações comerciais, com prejuízos para os agricultores. A farinha Bijusada apresenta granulometria superior à farinha de Cruzeiro do Sul. Em algumas regiões,  a preferência do consumidor por uma farinha com granulometria menor faz com que esse produto  seja menos valorizado no mercado do que as farinhas do grupo Seca”, explica.

Quanto à cor, o estudo mostra predominância de uma farinha com coloração “amarela” no Vale do Juruá (62,4%),  tendência decorrente de prática habitual dos produtores de adicionar açafrão à massa ou utilizar variedades de mandioca com essa característica, na fabricação do produto. Uma das surpresas reveladas é que o uso desse corante natural, nas dosagens praticadas pelos agricultores, não altera a qualidade da farinha.

Os resultados das pesquisas serviram para embasar mudanças na legislação, oficializadas com a reedição do Regulamento Técnico Oficial de Classificação da Farinha de Mandioca, em 2011, e possibilitaram a criação do Manual de Classificação de Farinha de Mandioca. “Com apoio de outras instituições,  ampliamos a faixa classificatória da farinha Grossa, incluindo novos critérios granulométricos no padrão de classificação nacional, além do uso de corantes naturais no processo de elaboração do produto, antes não permitido. Essas mudanças contemplam tanto a farinha produzida no Acre como em outros estados amazônicos, disponíveis e bem aceitas no mercado”, ressalta Virgínia.

Apoio para a manutenção da IG

Com a finalidade de apoiar os agricultores no processo de gestão do selo de IG da farinha de Cruzeiro do Sul, desde 2016, o projeto “Cadeia de valor da mandiocultura”, executado pelo Sebrae, Embrapa, Seaprof, Universidade Federal do Acre (Ufac) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre (Ifac), investe em ações para o fortalecimento da cadeia produtiva da mandioca no Juruá, melhoria da gestão das associações e cooperativas locais e em estratégias mercadológicas para fidelização da marca “farinha de Cruzeiro do Sul” e acesso a novos mercados.

Para Murielly Nóbrega, analista do Sebrae e gestora do projeto, o trabalho institucional integrado é essencial para fortalecer a organização social dos agricultores, ampliar a capilaridade dos benefícios diretos e indiretos da Indicação Geográfica e garantir a manutenção do selo. Como resultado desse esforço coletivo, 36% dos produtores associados inativos retornaram às associações de classe e estão em processo de adequação da produção para uso da IG. “Também apoiamos a implantação do sistema de nota fiscal eletrônica nessas entidades, o desenvolvimento de um programa de identidade visual para a farinha de Cruzeiro do Sul e a elaboração de plano de negócios e prospecção de mercados, iniciativa que já possibilitou a assinatura do primeiro contrato mensal de comercialização do produto pela Central de Cooperativas do Vale do Juruá (Central Juruá)”, diz.

Além de ações para fortalecimento da presença da farinha de Cruzeiro do Sul no mercado e estudos para viabilizar tecnologias para o processamento artesanal de novos produtos derivados da mandioca, a Embrapa será um dos pontos focais na implantação de metodologias de controle de qualidade e rastreamento da farinha de Cruzeiro do Sul. “Nossa função será analisar amostras da farinha entregue nas cooperativas, para atestar o cumprimento dos critérios de produção previstos no regulamento de uso da IG, como forma de assegurar a qualidade, proteger o conhecimento tradicional e garantir a autenticidade da origem do produto”, explica Joana Souza.

Indicação Geográfica, um reconhecimento

A Indicação Geográfica constitui uma estratégia de valorização de produtos tipicamente regionais, e pode ser concedida nas modalidades Denominação de Origem (DO) e Indicação de Procedência (IP). Recebe selo de Indicação de Procedência produtos com qualidade e reputação relacionadas a um fazer vinculado ao seu lugar de origem. O primeiro registro de IG no Brasil, nessa modalidade, saiu para os vinhos e espumantes do Vale dos Vinhedos, em 2002. De acordo com dados do INPI já são 45, incluindo uma diversidade de produtos, entre eles o café do Cerrado Mineiro e a cachaça de Paraty (RJ). A farinha de Cruzeiro do Sul é o primeiro derivado da mandioca com Indicação Geográfica no Brasil.

Segundo Débora Gomide, auditora fiscal do Mapa, órgão que apoia a Propriedade Industrial na Agricultura, o registro de Indicação Geográfica é o reconhecimento oficial da diferenciação do produto e tem o potencial de trazer múltiplos benefícios, com a promoção do desenvolvimento territorial, por meio da agregação de valor à produção, geração de trabalho e renda e manutenção do homem no campo. “A implantação de um sistema de IG implica mudança de postura para os produtores, no sentido de pensar e agir de forma coletiva, e envolve a participação de diferentes atores. A pesquisa científica tem papel fundamental nesse processo, propondo soluções para as comunidades nas diferentes etapas, do levantamento histórico da região à comprovação de características ímpares do produto e sua vinculação com o meio de produção”, destaca.

No Vale do Juruá, as casas de farinha são estruturas compartilhadas por diversas famílias na realização da “farinhada”, como é conhecido o processo de elaboração da farinha de mandioca. Estimativas da Seaprof indicam que a produção mensal de farinha na região é de 100 sacas de 50 quilos por unidade produtiva e aproximadamente 90% da produção é vendida para outros estados, ao preço de 140 reais a saca.  “Um dos grandes ganhos da Indicação Geográfica é a possibilidade de construir relações comerciais mais sólidas e um mercado mais justo. Esperamos aumentar em até 30% o valor da saca de farinha”, afirma Germano Silva, presidente da Central Juruá, entidade responsável por coordenar a gestão da Indicação Geográfica da farinha de Cruzeiro do Sul.