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Opinião

Foto: Divulgação Wanderley Fernandes da Cruz é professor, técnico judiciário e coordenador do Sindjufe Wanderley Fernandes da Cruz é professor, técnico judiciário e coordenador do Sindjufe
  • Professores de Palmas durante greve de fome da Câmara de Palmas

"Não tolero magistrado

Que do brio descuidado

Vende a lei, trai a justiça

-Faz a todos injustiça-

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre

E só acha horrendo crime

No mendigo que deprime"

(Trecho do poema Bodarrada, de Luiz Gama)

No dia 24 de setembro de 2017, na Câmara Municipal de Palmas, no Estado do Tocantins, 7 professores da rede municipal fizeram 86 horas em greve de fome, reivindicando, em síntese, o pagamento de progressões, a melhoria nas condições de trabalho e a reversão do corte de ponto promovido pelo prefeito de Palmas, o empresário Carlos Amastha (PSB). Do outro lado da rua está o Poder Judiciário, que concedeu diversas liminares à prefeitura declarando ilegal a greve. Ainda que saiba do tal princípio da demanda, bem como do debate acerca do minimalismo versus ativismo judicial, me causa estranheza a maneira de o Judiciário decidir certas questões, alheia à realidade social e sem ouvir as partes, como nos exemplos que abordo a seguir.    

Por que as decisões judiciais de reintegração de posse são tão rápidas frente à complexidade que envolve a questão da terra em nosso País, no campo e na cidade, permeada pela grilagem e especulação imobiliária? A nossa capital é um exemplo. Palmas tem 28 anos e cerca de 300 mil habitantes. Apesar de jovem, e grande territorialmente, a cidade padece, tal qual as metrópoles, do problema da falta de moradia. Os dados oficiais apontam um déficit habitacional de 20.000 (vinte mil) moradias na capital e 90 (noventa mil) no Estado.  O vazio demográfico é tão grande quanto a especulação imobiliária que, ao encarecer os imóveis, faz a maioria da população viver nas periferias, em áreas irregulares e em situação precária de vida. Não raro observa-se a contribuição de agentes públicos para a apropriação particular da terra, como a venda em 2016, pela prefeitura de Palmas, de dois grandes lotes de terra em uma área muito valorizada, por R$ 9,00 (nove reais) o metro quadrado para a empresa JP Arquitetura, conforme Diário Oficial do dia 15.02.2017. Embora pareça imoral, a empresa informou que adquiriu a área legalmente. Aí se coloca a questão: se um movimento social de luta pela democratização da terra ocupasse essa área, qual seria a atitude do Poder Judiciário frente ao problema de alguém que adquiriu uma área de maneira imoral e alguém que tomou posse dela de maneira ilegal? Com certeza, a adstrição à lei faria com que fossem concedidas quantas reintegrações de posse a empresa necessitasse, com o uso de aparato estatal para a retirada com violência dos ocupantes, se preciso fosse.

Por que o Poder Judiciário ignora completamente – e contribui com, seja por meio da ação ou da omissão – o encarceramento da pobreza no Brasil?A população carcerária brasileira é atualmente a quarta maior do mundo. São mais de 600 mil pessoas vivendo na prisão, sem nenhuma dignidade. Estima-se que 40% sejam presos provisórios, ou seja, que não foram julgados ainda. Tal situação, ao que tudo indica, só é possível que ocorra desapercebida em razão das características da população carcerária brasileira, formada, predominantemente, por jovens, negros, pobres e com baixa escolaridade. Afinal, alguém tem dúvida de que se criminosos ricos habitassem os presídios brasileiros a realidade ali seria completamente diferente?  O argumento jurídico para a manutenção do status quo é a reserva do possível. Essa tem sido a resposta às “provocações” das Defensorias Públicas, que, importante ressaltar, conta com uma estrutura aquém da que é oferecida ao Ministério Público e ao Judiciário.

Por que toda greve é declarada ilegal pelo Poder Judiciário, frente ao abandono secular da educação pública e das violações cotidianas de direitos de alunos e professores nas escolas públicas? É do conhecimento geral que as escolas públicas nunca contaram com quadro de profissionais com formação adequada, de modo que é muito comum um professor de determinada matéria ministrar aulas de outra, sobre a qual desconhece até mesmo os fundamentos, em flagrante desvio de função. É público e notório ainda o uso de contratos temporários, como nos demais órgãos públicos, como ferramenta de captação de votos. A falta de climatização e a superlotação das salas de aula comprometem sobremaneira o processo de ensino-aprendizagem e fazem da docência na rede de Educação Básica no Tocantins uma atividade “insalubre”. A falta de recursos, físicos e humanos, suprime dos estudantes, todos os dias, o direito à educação, em especial daqueles com deficiência.  Acerca da carreira, a docência é mal remunerada da Educação Básica ao Ensino Superior. As progressões funcionais dos trabalhadores em educação, e essa não é ume exclusividade do Tocantins, demoram uma vida para serem pagas, quando o são em vida. As leis que criam gratificações nunca são regulamentadas. Quando os trabalhadores fazem greves por melhores condições de vida e de trabalho, o Poder Judiciário responde com a declaração de ilegalidade, supondo que o aluno em sala implica, necessariamente, educação; já acerca de direitos remuneratórios não pagos, ele responde com a Súmula Vinculante 37 que, embora o enunciado pareça bem específico, ao dizer que não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia, é utilizado como uma muleta jurídica para negar todo e qualquer pedido, com exceção daquele que concedeu aos juízes, liminarmente, o “famigerado jabá” de R$ 4.000,00 de auxílio-moradia, maior que a remuneração inicial de qualquer professor da Educação Básica de qualquer Estado da federação.

Seria um exagero afirmar que o Poder Judiciário é o causador das mazelas sociais anteriormente expostas. A precarização da vida é consequência de uma atuação política pautada pelo interesse econômico. O que o Judiciário faz é tão somente legitimar tal situação, de modo que as decisões judiciais, ante ao exposto, carecem de legitimidade. Com efeito, para a manutenção de um Estado corrupto e com contrastes sociais tão fortes como o nosso – somos uma das maiores economias do mundo e, ao mesmo tempo, temos uma das piores distribuições de renda, que permite 6 pessoas mais ricas acumularem a mesma riqueza que as 100 milhões de pessoas mais pobres, segundo estudo divulgado pela Oxfan – é necessário distanciar os que decidem da realidade material das massas. Esse distanciamento é promovido por diversos meios: a) pela impenetrabilidade do direito pelo cidadão comum; b) pela completa ausência de participação popular no controle do Poder Judiciário;c) pelos símbolos e vestes talares – o Tribunal de Justiça do Tocantins vai gastar 1.2 milhão de reais com letras e brasão e a Justiça Federal gastou 17 milhões com um prédio que comporta duas varas; d) pela remuneração vantajosa a seus membros, o Judiciário brasileiro é um dos que pagam melhor no mundo e o Tribunal de Justiça do Tocantins, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, é o terceiro do País com maior despesa mensal média com o juiz.  

Ante o exposto, cabem os questionamentos seguintes: se um (a) juiz (a) estivesse sujeito a morar nas mesmas condições em que maioria da população brasileira, ele deferiria uma reintegração de posse em áreas ocupadas tão rápido, inclusive com uso da violência legal e sem ao menos ouvir a outra parte, ainda que o direito permitisse? Se fosse possível um filho de um (a) desembargador (a) compartilhar a mesma cela que um preso comum – ainda que flagrado aquele com dezenas de quilos de droga – o Judiciário seria silente frente à condição subumana dos presídios brasileiros? Se o salário dos juízes atrasasse, se eles precisassem pagar aluguel com o dinheiro da própria remuneração, se não lhes fossem pagas as progressões funcionais (caso tivessem), se precisassem se locomover de ônibus, se não tivesse ar condicionado em todos os fóruns, se seus filhos estudassem em escolas sem ar condicionado, se precisasse, enfim, fazer uma greve para reivindicar direitos, teria permitido o corte de ponto, como o Supremo Tribunal Federal fez com o julgamento do  RE 693456/RJ ano passado que, na prática, fulminou o direito de greve dos servidores público, cujas consequências começaram a ser sentidas pelos professores de Palmas durante greve de fome frente ao corte de ponto? Frente a isso, é possível dizer que o princípio da imparcialidade realmente existe? Tem legitimidade o Poder Judiciário para, nas condições em que vivem os seus membros, decidir, de um gabinete climatizado, a vida das massas que se deteriora nas ocupações, nas periferias, nas prisões e nas greves?

*Wanderley Fernandes da Cruz é professor, técnico judiciário e coordenador do SINDJUFE-TO (Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário Federal do Tocantins)