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O Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) quer que o STM (Superior Tribunal Militar) instaure inquérito policial militar para investigar e julgar as responsabilidades dos envolvidos na destruição e extravio de documentos oficiais referentes à Guerrilha do Araguaia.

O presidente nacional da entidade, Cezar Britto, enviou nesta quarta-feira (12/3) uma representação ao presidente do STM, brigadeiro Flávio de Oliveira Lencastre, onde destaca que o episódio da destruição dos documentos da guerrilha não estão acobertados pela Lei da Anistia, de 1979, já que ocorreu posteriormente a essa data.

Conforme informa a OAB, a representação pede o enquadramento dos responsáveis no artigo 321 do Código Penal Militar, que prevê penas de dois a seis anos para o crime de extravio ou inutilização de documento oficial.

Cezar Britto afirmou esperar que o STM acolha a representação e dê voz à Presidência Nacional da OAB para sustentar de sua tribuna a necessidade de punição aos responsáveis pela destruição dos documentos sobre a guerrilha. “O povo brasileiro tem direito a conhecer sua história e esse fato não pode ficar sem investigação das responsabilidades pelo extravio dos documentos relativos a esse período”, disse Britto.

“Esperamos que o Superior Tribunal Militar, fiel às tradições, haverá de determinar a apuração dos fatos não acobertados, de forma alguma, pela Lei da Ansitia, até porque alude a desaparecimento de documentos em data posterior à sua edição, sendo uma ilogicidade o perdão prospectivo, para o que visse a acontecer depois do benefício”, sustenta a representação.

A decisão do Conselho Federal da OAB foi aprovada por unanimidade em sessão plenária da entidade, com base em proposta apresentada pelo jurista Fábio Konder Comparato, ao defender o direito da cidadania brasileira ao conhecimento de sua história, da qual a Guerrilha do Araguaia é considerada um capítulo significativo.

O relator da proposta na entidade, conselheiro federal da OAB pelo Rio de Janeiro e advogado de presos políticos durante a ditadura, Nélio Machado, observou que a representação é fundamental para o resgate de fatos importantes na história do país e para que não fiquem impunes os responsáveis pela destruição dos documentos importantes sobre o que aconteceu na guerrilha. “O sumiço ou queima da documentação oficial das Forças Armadas e dos órgãos de segurança do período 1964-1985, justamente os chamados anos de chumbo, não é aceitável e merece uma investigação; e é bom lembrar que esse episódio não está acobertado pela Lei da Anistia”, afirmou.

Leia a seguir, a íntegra da representação do Conselho Federal da OAB:

"Exmº Sr. Ministro Presidente do Superior Tribunal Militar

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por seu Presidente, considerando o teor do Processo nº 2007.31.02468-01, submetido a exame do Plenário do Colegiado, na sessão de 18 de fevereiro do corrente, em razão das atribuições que a Constituição e a Lei deferem ao órgão que representa os advogados do País, pela presente, especando-se no artigo 44, inciso I, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, formula representação ao Colendo Superior Tribunal Militar, objetivando a devida apuração de fato grave, que enodoa o País, não só pelo que representa a violência do Estado, no caso concreto, mas sobretudo pela omissão quanto à apuração de responsabilidades, em face do que preceitua o artigo 321 do Código Penal Militar, bem assim outros dispositivos legais que cuidam da apuração de crimes de competência da Justiça Militar, como se passa a expor:

Antes de mais nada, é dever de Justiça que se reconheça o papel histórico desempenhado pela Justiça Militar no País, completando agora seu bicentenário.

A homenagem não se deve ao decurso do tempo ou à circunstância de ser a Justiça Castrense a mais antiga do País, instaurada desde a vinda da família real, com a chegada de D. João VI à então Colônia, no distante ano de 1808.

Em verdade, a reverência que se presta tem a ver com o desempenho do Colegiado, em diversas quadras vivenciadas, destacando-se, em particular, a postura assumida a partir do Ato Institucional nº 2, de 1965, que deferiu à Justiça Militar a competência para processar e julgar os delitos de natureza política, ao invés da Justiça Comum.

Chegou-se a imaginar, à época, que a atuação dos Conselhos de Justiça Militar, permanentes ou especiais, em primeiro grau, e mesmo do Superior Tribunal Militar, em ações penais originárias ou no âmbito recursal, representava ameaça à qualidade da prestação jurisdicional, em face do quadro anômalo da Nação, pois estava-se diante – e a história o registra – de ruptura do quadro institucional e constitucional do País.

A Lei era imperfeita, sobretudo a Lei de Segurança Nacional, de rigor desmedido e tipos penais mal formulados, tudo se agravando com o surgimento do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que suprimia as garantias mais elementares e fundamentais para o Estado de Direito, até mesmo o habeas corpus, sem falar na vedação do exame, pelo Poder Judiciário, de atos do Comando Supremo do Movimento de 1964.

No entanto, com todas as imperfeições humanas, diante de leis draconianas, merece destaque, como testemunharam advogados de escol que militaram nas Cortes de Justiça Militar, cabendo citar, desde logo, o Professor Heleno Cláudio Fragoso – que procedeu ao efetivo registro, em seu livro “A Advocacia da Liberdade” –, o desempenho do Superior Tribunal Militar, que foi alvo de encômios de outros tantos advogados que, a exemplo do primeiro, já não estão mais entre nós, como Sobral Pinto, Evaristo de Moraes, Augusto Sussekind de Moraes Rego, Lino Machado Filho, sem falar em outras figuras exponenciais, que ainda estão a dizer das virtudes históricas do Sodalício.

Em nada o Superior Tribunal Militar fez lembrar o famigerado Tribunal de Segurança Nacional, atuante ao tempo do Estado Novo, ocupando-se, naquele tempo, de mera simulação de justiça.

É, pois, com confiança nas melhores tradições da Corte que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu bater à porta do Superior Tribunal Militar, em face de situação singular que não pode ser esquecida, como se não tivesse existido, o que em nada enalteceria a história de nossa República, diante do interesse coletivo e dos cidadãos, pela conformação de um Estado de Direito Democrático, como preconiza a Carta de 1988, para solicitar, na forma da Lei e das responsabilidades do Colegiado, do próprio Ministério Público Militar, que não deve ficar inerte, por suas atribuições constitucionais e legais que se investigue, com determinação e rigor, a infração prevista no artigo 321 do Código Penal Militar, observada a legislação de regência, com instauração de inquérito policial militar.

O delito que acaba de ser citado considera fato típico, antijurídico e culpável o extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento. Transcreva-se o referido artigo 321 da Lei Substantiva Castrense, destacando-se a cominação da pena que lhe corresponde, in verbis:

“Art. 321. Extraviar livro oficial, ou qualquer documento, de que tem a guarda em razão do cargo, sonegá-lo ou inutiliza-lo, total ou parcialmente:

Pena – Reclusão, de dois a seis anos, se o fato não constitui crime mais grave”.

Trata-se de crime contra o dever funcional, inserido no Título VII do Código Penal Militar, que cuida das infrações contra a Administração Militar, enquadrando-se o delito de que se cogita na espécie de comportamento doloso, não açambarcado, de nenhuma forma e por qualquer aspecto que se examine, pela lei que concedeu anistia, em 1979, nos termos então consignados, de absoluta inaplicação ao episódio superveniente que se traduziu na destruição de arquivos de serviços de inteligência das Forças Armadas, notadamente quanto ao que se identificou, na linguagem da própria repressão, como “A Guerrilha do Araguaia”.

A introdução que se fez na presente representação às glórias do Superior Tribunal Militar, gizando-as, revela a confiança da Ordem dos Advogados do Brasil no rigor da apuração dos fatos, a reclamar perquirição nos altos escalões das Forças Armadas, que não poderiam ser alvo de maiores questionamentos, sem a autoridade constitucional e histórica da Corte, sob pena de nada se fazer, premiando-se a inércia e assegurando-se a impunidade.

A motivação é clara, não podendo, de antemão, serem excluídas possíveis responsabilidades de Oficiais-Generais, os quais só podem ser processados e julgados precisamente pelo STM, sendo de mister que o episódio alusivo ao desaparecimento de documentos relacionados com a morte de várias pessoas, apontadas como envolvidas no episódio denominado “A Guerrilha do Araguaia”, venha à tona, nele incidindo as luzes da Corte, que jamais desertou de seu papel de fazer justiça, impondo-se seja determinada, mercê de requisição formal, o indispensável inquérito policial militar, independentemente de possível omissão do Ministério Público.

Cumpre recordar que a iniciativa formal que se desdobrou na presente representação decorreu de proposta do Jurista Fábio Konder Comparato, detentor da Medalha Rui Barbosa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, honraria maior que se defere aos expoentes da profissão, em razão da obra, do exemplo, da atuação marcante nos mais elevados níveis, daí o parâmetro com o insuperável jurista da Bahia e do Brasil.

O grande advogado e professor, louvando-se em matéria publicada pela Revista “Carta Capital”, em sua edição de 4 de abril de 2007, nº 438, solicitou que a Ordem dos Advogados do Brasil formulasse notitia criminis, em razão do extravio de documentos secretos dos serviços de informações das Forças Armadas, no período de 1964 a 1985.

A ser verdade – e ninguém contestou a notícia –, pretendeu-se apagar da história mais de duas décadas, o que é crime, por todos os ângulos que se examine o fato apontado.

Por pior que seja o holocausto, a Alemanha não deixou de perquirir, para sua própria história e para que nunca mais se repetisse a tragédia que se deu durante a II Guerra Mundial, o que se passara nos seus terríveis e abomináveis campos de concentração, com o extermínio impiedoso, cruel e obviamente criminoso de milhões de judeus.

Ora, nada há de justificar que se aceite como verdade apodítica e definitiva o que se vê estampado no semanário, cuja capa traz título que de per si já envergonha nossa história, assim vazado:

“MEMÓRIA DA DITADURA UMA SOMBRA COBRE A HISTÓRIA

Os militares comunicaram ao governo que os arquivos dos serviços de inteligência das Forças Armadas, fundamentais para reconstituir a face repressiva do regime, foram destruídos. O Ministério da Defesa vai investigar o sumiço”.

Lendo-se a matéria que ensejou a proposta do Professor Fábio Konder Comparato, à página 23 da revista já citada, tem-se novo título, traduzido em contundente manchete, onde se lê:

“UMA HISTÓRIA FUZILADA DITADURA O sumiço de arquivos da repressão sustenta a impunidade dos torturadores”.

Junta-se à presente representação o teor da publicação, que não foi a única sobre o tema, pois não de agora a nação vem se manifestando, inclusive por órgãos da imprensa, além de professores, intelectuais, historiadores, ou mesmo cidadãos como tal, familiares de vítimas, todos objetivando elucidação cabal de momento sombrio de nossa história, que não pode ser esquecido ou desprezado como se não tivesse acontecido.

Da matéria que formou o procedimento da OAB, colhida na Revista “Carta Capital” extrai-se citação atribuída a Antônio Cícero, em que se lê:

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la (...) Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica”.

Assim se faz a história, com o registro do ocorrido. No Brasil, já houve quem dissesse que não ocorreu o holocausto, tendo certa publicação sobre o tema sido submetida a exame, recentemente, em caso célebre, pelo Supremo Tribunal Federal. No Brasil, há quem diga – longe da verdade, obviamente – que não houve a “Guerrilha do Araguaia” ou o extermínio de dezenas de pessoas, sem reconhecimento do poder público, buscando-se os corpos, até hoje.

Ainda recentemente, veio à baila entrevista do ex-Deputado Sebastião Curió, narrando peculiaridades da mortandade ocorrida à época, sendo evidente a necessidade de sua oitiva e de tantas pessoas mais, objetivando-se, desta forma, a busca da verdade real, com o restabelecimento da história e com a apuração do estranho – se veraz – desaparecimento dos documentos de 1964 a 1985, particularmente no ponto alusivo ao suposto desaparecimento ou eliminação dos documentos referentes à “Guerrilha do Araguaia”, não existindo qualquer termo ou qualquer registro confiável quanto à veracidade do episódio.

Acosta-se a esta representação outras tantas matérias de relevo, em homenagem à própria atuação investigativa autônoma de jornalistas, de pesquisadores, de historiadores e de cidadãos em geral, todos manifestando o propósito que tem sentido transcendente, de se buscar a verdade dos fatos.

Há órgãos de segurança citados formalmente em matérias publicizadas, tais como Cenimar, Cisa e CEIEx, vinculados respectivamente à Marinha, Aeronáutica e Exército, não sendo atribuição apenas do incompreendido Ministério da Defesa apurar os fatos, como se pretende, até porque não tem a aludida pasta qualquer atribuição apuratória em termos criminais, tarefa que corresponde a cometimento da Polícia Judiciária Militar, do Ministério Público Militar, do Superior Tribunal Militar e das Auditorias Militares, a partir da elucidação das devidas responsabilidades.

O inquérito a se instaurar, por determinação do Superior Tribunal Militar – caso não se antecipe, diante dos termos da representação, o Procurador-Geral da Justiça Militar –, há de ter como encarregado, naturalmente, Oficial-General, devendo, sem dúvida, proceder-se desta forma na Capital Federal, pois o tema em discussão guarda especificidade e relevâncias tais que reclamam investigação de “cima para baixo”, sob pena de prevalecer a máxima, de que “o superior nunca erra, às vezes se engana, mesmo assim por culpa de subordinado”.

Tentou-se dizer, em certos contextos, que a tortura teria ocorrido, no País, à revelia dos escalões superiores.

O livro do jornalista Elio Gaspari, sobre aqueles tempos – ao lado de outras tantas evidências coligidas – demonstra o contrário, vale dizer, as sevícias não eram desconhecidas, quando praticadas de forma usual e rotineira, dos escalões superiores. Tratava-se de versão conveniente e confortável, em antítese à história.

Presentemente, todos sabem que os Estados Unidos, a despeito de suas tradições democráticas e de uma história rica no direito constitucional – influenciando diversas nações, com a importância de sua Suprema Corte e o legado de decisões marcantes, como no tema da igualdade racial, e outras tantas liberdades civis –, desrespeitam os direitos humanos de forma frontal e chapada.

Vejam-se as prisões de Guantánamo, negando-se aos presos tudo quanto seria exigível pelos padrões da justiça americana ou de qualquer país civilizado.

Porém, a história não será apagada, pois o próprio povo americano, no processo democrático das eleições, de uma forma ou de outra, dirá do seu desconforto ou de sua indiferença, o que seria lamentável, sobre a triste realidade que não se pode deixar na penumbra. Tudo, sem prejuízo, é claro, de manifestações necessárias e altivas da própria Suprema Corte Norte-Americana, expectativa de todos os democratas do mundo.

A história julgará também as realidades de Cuba, de Fidel Castro, que afirma que a história o absolverá.

De todo modo, o crime praticado em nosso País, não apenas quanto aos descomedimentos no combate ao que teria sido a “Guerrilha do Araguaia”, mas, no mínimo, no que concerne à violação do artigo 321 do Código Penal Militar, tem de ser objeto de imediata e rigorosa apuração, chegue onde chegar, atinja quem atingir, pois assim é no Estado de Direito Democrático, tal o compromisso do País, dimanante da Carta Cidadã de 5 de outubro de 1988, que há de unir Nação e Governo para que não prevaleça o esmaecimento da lembrança com o apagar da história.

O Superior Tribunal Militar será fiel às suas tradições e haverá de determinar a apuração dos fatos não acobertados, de forma alguma, pela Lei da Anistia, até porque se alude a desaparecimento de documentos em data posterior à sua edição, sendo uma ilogicidade o perdão prospectivo, para o que viesse a acontecer depois do benefício, o que nenhuma hermenêutica poderia conceber.

Reitera a Ordem dos Advogados do Brasil, por seu Conselho Federal, através do seu Presidente, a homenagem à Corte, solicitando que ao se submeter a matéria ao Plenário, como se pretende, que se dê voz à Presidência da Ordem, que terá a honra de ocupar a mesma Tribuna em que se notabilizaram, na luta por direito e justiça, grandes advogados desta pátria e que fizeram registros os mais encomiásticos a esta verdadeira Casa de Justiça.

Brasília, 11 de março de 2008.

Cezar Britto

Presidente do Conselho Federal da

Ordem dos Advogados do Brasil"

Quarta-feira, 12 de março de 2008

 

Da redação com informações Última Instância