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Opinião

Foto: Divulgação

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Notícias dos últimos dias dão conta de que militares da Missão de Paz da ONU (Organização das Nações Unidas) no Haiti, coordenada por um brasileiro, estão sendo investigados por estupro e por troca de remédios e até de alimentos por sexo; soldado do 27º Batalhão de Infantaria Paraquedista desistiu da carreira militar no Exército brasileiro depois de ser espancado por cerca de 20 superiores seus, em um trote que lhe custou a extração de um dos testículos; três militares do Serviço Reservado da Polícia Militar de Goiás invadiram uma casa, sem ordem judicial, mataram um jovem de 16 anos e balearam o pai dele. Longe de serem casos isolados, sobram exemplos de desvios de conduta de militares, por vezes afrontando outras instituições, como a invasão de uma delegacia de Polícia Civil em Paraíso do Tocantins por policiais militares armados, supostamente para intimidar uma investigação. Ainda assim, serão instaladas diversas escolas militares em diversos Estados, como Goiás, Amazonas, Tocantins e no Distrito Federal. O que justifica a escolha política pela militarização das escolas civis, frente à fragilidade do argumento da disciplina? O presente texto não tem a capacidade de responder essa pergunta, mas tão somente levantar mais questionamentos.

Diante dos exemplos, verifica-se que, embora a indisciplina, muitas vezes, prejudique o processo de ensino aprendizagem na escola pública, ela não deriva do caráter civil da instituição. Desde que educação básica se tornou obrigatória, deixando de atender apenas a uma parcela privilegiada da população, houve um aumento considerável da demanda, sem as correspondentes políticas públicas. Com isso, a educação se viu diante de uma encruzilhada, senão de uma diretriz, qual seja: educar a população mais pobre por meio de práticas pedagógicas de contenção da indisciplina, eliminando as práticas punitivas que impliquem na violação de direitos dos estudantes ou constituam a negação da educação, como o castigo, a humilhação, o impedimento de assistir às aulas e, principalmente, a expulsão/transferência. Assim, vislumbram-se duas alternativas: ou as escolas militares estão ignorando o dilema anteriormente apresentado ou elas não enfrentam com a mesma intensidade os problemas de indisciplina que a escola pública civil enfrenta. Ao menos dois fatos, questionáveis também, corroboram a segunda opção, sem anular eventual ocorrência da primeira: as escolas militares atendem a um alunado socialmente diferenciado e elas têm mais profissionais disponíveis.  

Com efeito, a seleção de estudantes para ingresso nessas escolas contribui em parte pela disciplina e pelos resultados nos exames. Ser aprovado em uma seleção não é resultado somente do esforço individual do estudante, tendo em vista que os indicadores do IBGE (2000) apontam a relação existente entre condição social e nível de ensino, ao verificar que “pessoas de doze a quatorze anos que vivem com uma renda familiar per capita acima de dois salários mínimos têm uma média de 6,4 anos de estudo, enquanto aquelas que vivem abaixo deste rendimento apresentam uma média inferior (3,4 anos de estudo)”, repetindo-se as proporções nos demais grupos de idade. Desse modo, as escolas militarizadas não atendem à elite do país, mas também não atendem à população mais carente. Isso indica que são filhos da classe média, cujas condições de vida permitem maior conscientização sobre a importância da educação.

Importante ressaltar que escolas civis que exigem processo seletivo para ingresso também têm “bons desempenhos”, como os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia espalhados pelo país. Há, ainda, exemplos melhores, como as escolas civis que sorteiam vagas e, mesmo com o corpo discente heterogêneo, têm “bons resultados”, como o Colégio de Aplicação da UFG (Universidade Federal de Goiás). Isso, além de comprovar a desnecessidade da militarização das escolas, faz ressurgir a indagação sobre a cínica escolha política pela militarização, em detrimento de instituições e de estudiosos que se dedicam exclusivamente à educação pública, seja pesquisando, seja ensinando. Afinal, não são os agentes políticos – por meio da omissão, do clientelismo e da interferência nas gestões escolares e nos Conselhos – os principais responsáveis pela falência da educação pública? E querem fazer a população crer que o a situação precária da educação básica deve-se ao caráter civil das instituições?

Em relação à disponibilidade de mais pessoal para as escolas militares, é reveladora a fala do Comandante de ensino da PM de Goiás, em recente entrevista a um jornal de circulação local daquele Estado, ao falar sobre a militarização de mais 10 (dez) unidades escolares lá. Segundo ele, cada escola militarizada necessitaria de, pelo menos, 16 (dezesseis) policiais a sua disposição. O acréscimo de 16 profissionais é plenamente desejável. Para se ter uma idéia, as maiores Escolas de Tempo Integral de Palmas, no Tocantins, salvo engano, contam com 16 profissionais na gestão (incluídos os do apoio) para administrarem mais de 1.000 alunos e cerca de 100 servidores. Dezesseis profissionais a mais consistem num incremento de 100% do recurso humano incumbido da gestão e da organização dos estudantes na escola. Questiona-se, no entanto, por que não se faz o mesmo pelas escolas civis, dobrando o número de pessoas ocupadas com a gestão escolar; e por que a Polícia Militar cederia 16 (dezesseis) policiais à educação, frente à evidente necessidade de mais policiamento, com viaturas e homens, pelas ruas das cidades? No caso de Goiás, as 45 unidades escolares militarizadas consumiriam um contingente considerável;

Diante do exposto, verifica-se que os “bons resultados” obtidos nos exames nacionais pelas escolas militarizadas precisam ser vistos com cautela, pois cria comparações infundadas entre as escolas civis e militares, sempre em privilégio desta e em menosprezo daquela. A indisciplina não é algo exclusivo de instituições civis. A gestão militarizada não garante a disciplina. As escolas públicas civis, nas mesmas condições, têm resultados melhores que escolas militarizadas e ainda não apresenta a inconveniência do autoritarismo. A escolha política pela militarização das escolas, em detrimento dos estudos e opiniões de quem vive a educação, apresenta-se carregada de cinismo e merece atenção, por isso o debate é urgente, para romper o silêncio quase sepulcral sobre o tema e para tentar desvendar os motivos que subjazem a tal escolha.

*Wanderley Fernandes da Cruz  é professor, técnico judiciário, estudante de direito da UFT e coordenador geral do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário Federal no Tocantins (SINDJUFE-TO ).