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Opinião

Foto: Divulgação

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A densa névoa da crise e da polarização política nos impede de ver com clareza onde estamos e para onde podemos ir. Mais do que nunca vale a frase de Magalhães Pinto: Política é como nuvem; você olha e está de um jeito, olha de novo e ela já mudou.

Como não é possível imaginar o que acontecerá, até mesmo nos próximos dias, vale a pena um exercício mais retrospectivo para, pelo menos, tentar entender o que está em jogo.

Nestes 30 anos de experiência democrática, foi possível por em pé um mecanismo político complexo e delicado, mas que produziu, durante duas décadas, resultados positivos do ponto de vista da estabilidade política, da estabilidade econômica e da redução da pobreza e das desigualdades.

Do ponto de vista da arquitetura institucional, esse mecanismo assumiu a forma do presidencialismo de coalizão, cuja pedra de toque é a capacidade  de coordenação por parte de uma  Presidência da República, dotada de amplos poderes legislativos. Essa coordenação sempre implicou na distribuição, entre os participantes da base do governo,  de  diferentes tipos de recursos lícitos e ilícitos. Mas, não só deles:  a capacidade de negociação da Presidência foi também central.

Do ponto de vista do jogo político, esse mecanismo se sustentou na competição eleitoral centrípeta -- e enfatizo aqui o centrípeta --  entre duas coalizões, encabeçadas por dois partidos nacionalmente implantados -- PT e PSDB – com apoio de um grande partido de centro, o PMDB.

Mas, não se tratou nunca apenas de instituições e de uma arena eleitoral que empurravam as duas coalizões para o centro, dando incentivos à moderação. Ambas se moviam em um terreno de convergência substantiva em torno de dois objetivos: a estabilidade da moeda e o que Samuel Pessoa chamou de “contrato social da Constituição de 1988”: ou seja, o compromisso com políticas sociais universalistas e  com iniciativas  voltadas a redução da pobreza extrema. Pelo menos até 2008-2009, tivemos, simultaneamente, competição eleitoral acirrada e relativa convergência com relação a políticas governamentais.

Esse terreno de convergência substantiva começou a ser erodido, já no final do governo Lula, mas muito claramente no primeiro governo Dilma, quando o compromisso com a estabilidade da moeda foi afrouxado e uma leitura particular do que ocorria na economia internacional abriu espaço para a experimentação desastrada em matéria de política econômica.

Ao mesmo tempo, começaram a ficar claros os indícios de esgotamento da capacidade de o governo petista renovar sua agenda de inclusão. (A presidência Dilma  não passará à história por inovar  em  matéria de políticas, a menos que alguém ache que Minha Casa, Minha Vida tem algo de novo. Ela tampouco passará à história por sua habilidade para negociar e somar aliados).

As diferentes leituras das manifestações de Junho-julho de 2013, as divergências em matéria de política econômica, os primeiros resultados da Lava Jato e os sinais claros de  esgotamento do ciclo petista transformaram as eleições de 2014 em um certame particularmente  crispado e polarizado.

 A primeira vítima disso foi Marina Silva, mas a principal foi a possibilidade de entendimento entre governo e oposição em torno do que realmente interessa: uma agenda de política econômica capaz de sintonizar o país com as novas circunstâncias internacionais. Ben Bernanke, ex-presidente do Federal Reserve, disse que “não há ateus nas trincheiras, nem ideólogo nas crises fiscais”. Quando a crise fiscal aperta, as alternativas se estreitam e são todas amargas.

O pós eleições constitui, a meu juízo, o que a historiadora  pop Barbara Tuchman chamou de marcha da insensatez – “a impotência da razão ante os apelos da cobiça, da ambição egoísta e da covardia moral”, segundo ela, ou como os cientistas politicos preferimos: uma situação na qual atores politicos racionais, em busca de maximizar seus ganhos, acabam por produzir um desastre coletivo.

Setores dominantes dentro do PSDB, desde o primeiro dia, apostaram na possibilidade do impeachment de Dilma, mesmo sem provas materiais. O governo, em sua soberna-- e depois de praticar formidável estelionato eleitoral -- achou que não precisava conversar com a oposição. O PT houve por bem bombardear a política econômica de sua presidente, como se houvesse uma alternativa doce ao ajuste amargo. A Câmara, abandonada a suas forças profundas, elegeu Eduardo Cunha. O MDB se colocou na soleira da porta, às vezes, dizendo que está dentro, às vezes sugerindo que pode sair. E agora, o Ministério Público e  juízes missionários  resolveram jogar – pesado – para a arquibancada.

A democracia está em perigo? Não creio. Há muitos sinais de vitalidade: o funcionamento independente do sistema de justiça, a autonomia e diversidade da imprensa, a capacidade de mobilização da parcela ativa da sociedade.

O presidencialismo de coalizão faliu? Também não creio. Apenas a presidência perdeu sua capacidade de coordenação e de negociação, dois elementos necessários para azeitar e por em marcha o mecanismo desta forma peculiar de sistema presidencial.

O sistema de partidos está em crise? Acho que sim. É pouco provável que a competição eleitoral  nacional continue a se estruturar em torno da disputa PT X PSDB. Não só o PT pode encolher muito, como não é descabido imaginar que a continuidade da Lava Jato acabe por atingir também o PSDB.  (Além de já ter chegado a figuras importantes do PMDB). Afinal, nem um viajante chegado de Marte acreditaria que as grandes empreiteiras irrigaram a horta do PT em troca de bons negócios e financiaram o PSDB por concordarem com os valores tucanos.

O desaparecimento – ou a redução à irrelevância – dos dois partidos ou, de apenas um deles alterará completamente os termos da competição política  de formas que não sabemos prever.

O encolhimento do PT abrirá um espaço que poderá ser ocupado por lideranças de tipo populista, dispostas a surfar nos anseios persistentes de participação e inclusão, que o PT encarnou antes de – com o perdão da expressão demótica—enfiar o pé na jaca.

Partidos não se improvisam, levam tempo para se firmar. E os que podem ser levados de roldão, na crise, foram os protagonistas da transição democrática e portadores das múltiplas aspirações que com ela afloraram. Se isto ocorrer estaremos em um admirável mundo novo.

*Maria Hermínia Tavares de Almeida é pesquisadora do Cebrap e professora de ciência política da USP