Vivemos um momento histórico jamais vivido no Brasil e talvez no mundo, em que enfrentamos o isolamento social tendo em vista a pandemia que assola os habitantes do planeta Terra em razão do vírus Sars-Cov-2, causador da Covid-19. Nesse ambiente de inigualável excepcionalidade, salutar revelar que não houve ainda sequer tempo para a real acomodação e amadurecimento do direito posto, principalmente os delineados na recém editada Medida Provisória 936 de 1 de abril de 2020, que criou o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
Importante ressaltar a possibilidade de que em algumas hipóteses o acordo individual do trabalho se apresente com força tal, a permitir a própria redução salarial, que em momento regular de temperatura e pressão da sociedade está reservado constitucionalmente – e diga-se como direito fundamental - aos atores sociais denominados sindicatos, como se lê no artigo 7º, inciso VI da Constituição Federal.
Não há dúvida que a melhor representação e mais segura dos empregados e empregadores são os atores sociais sindicais, tendo em vista que vivenciam nos rincões desse nosso país realidades absolutamente diversas, conhecendo com inigualável proximidade a funcionalidade empresarial, o cotidiano dos trabalhadores, os anseios de ambos e ainda, e o que mais importa, os reais limites de seus representados quanto a capacidade financeira da categoria econômica ou da própria empresa e de outro lado a real necessidade dos trabalhadores. Muitas vezes o sindicato é capaz de realizar a “municipalização” do amplo direito do trabalho estatuído em regra nacional através do texto celetista.
Essa conquista quanto ao reconhecimento desses atores se deu pela luta solidária e muitas vezes solitária de muitos sindicalistas no Brasil, principalmente, mas não exclusivamente de forma mais recente, nas décadas de 70 e 80, momento em que houve – ao menos no Brasil – movimentos que exerceram legítimas e intensas pressões por melhores condições de trabalho, como salários mais justos, duração do trabalho com limitação evitando os infindáveis acidentes do trabalho, entre outras conquistas albergadas por categorias bem organizadas.
Formou-se então no Brasil o sindicato forte, capaz de unidos em nome dos trabalhadores resguardar com exígua representatividade os direitos de categorias. Não é por acaso, que o texto constitucional revela a importância e realiza em certa medida fortes reservas específicas em defesa de categorias para os sindicatos, como podemos observar na extensão do seu texto, apontando o exemplo da necessidade da atuação sindical para o reconhecimento das negociações coletivas.
Após essa vitória do sindicato como força atuante de um legítimo poder negocial, acaba por ocorrer em terrae brasilis uma desconstrução - ainda que parcial - da própria existência e significado do dito movimento sindical. Talvez esse enfraquecimento tenha sua origem no próprio desvio da precípua função sindical, ou seja, um desvio de foco, pois muitos dos sindicatos representantes de empregados acabaram direcionando esses atores sociais para objetivos mais políticos, principalmente pela existência até recentemente do chamado imposto sindical, que acabou por encher os cofres dos sindicatos, e sua vinculação – ao menos de poder, pois não pertencem ao sistema confederativo – às centrais sindicais que passaram a ainda que indiretamente comandar os sindicatos.
Esse enfraquecimento pode ser observado pelas próprias negociações coletivas, que em boa medida acabaram se tornando repetições da própria lei ou simples cópias dos próprios instrumentos coletivos anteriores, guardadas as respeitáveis exceções
O golpe fatal se deu com a retirada abrupta das contribuições sindicais obrigatórias, com o que não concordamos quanto à forma realizada, fazendo com que os cofres que antes eram sempre cheios, se esvaziassem, impedindo a concessão de um prazo para que os sindicatos realizassem uma programação de seu futuro custeio.
Mesmo com todos esses acontecimentos, o legislador acabou por inserir (lei 13.467/2017 – artigo 611-A) significativa alteração no ordenamento jurídico, reconhecendo uma vez mais o significado do sindicato, contudo, agora, em inovação ainda não identificada no texto legislativo, destaque de prevalência de eventuais acordos coletivos e convenções coletivas em relação à lei para determinadas situações (incisos I a XV do artigo 611-A), não exigindo para efeito de validade do negócio jurídico (Código Civil artigo 104) a existência de contrapartida.
As questões que se colocam são: 1) seria inconstitucional a manifestação de uma vontade se sobrepor a lei? 2) ou, nada mais é que a consequência esperada da autonomia privada coletiva?
Ao que parece, o inciso VI do artigo 8º combinado com os incisos VI e XIII do artigo 7º da Constituição Federal já permitiam a ativação dessa mecânica, o que demonstra a sintonia da regra editada com o texto maior, não havendo no nosso sentir em se falar em inconstitucionalidade de plano, exceção feita aos patamares mínimos civilizatórios indicados no próprio texto constitucional, momento em que a regra se destacaria da interpretação conforme a constituição para ter vida própria, o que se torna inadmissível no nosso sistema jurídico.
A regra de prevalência do negociado sobre o legislado encontra seu freio ou contraponto – aliás como qualquer normatização que jamais será absoluta – na violação as garantias mínimas. Essa regra parece padrão. Porém, não é demais lembrar que o princípio da norma mais favorável sempre acompanhou o direito do trabalho ao longo da história, sem que se criasse a visão ou pecha de inconstitucionalidade.
A recente medida provisória atende formalmente os requisitos formais e procedimentais constitucionais do artigo 62 para ser editada. Entretanto, a questão causadora de grande polêmica no mundo jurídico diz respeito a possibilidade ou não de no estado de calamidade decretado e vivenciado nos dias de hoje ser possível que a dita MP, ainda que contra texto expresso constitucional constante no artigo 7º inciso VI, criasse mecanismo alternativo de negociação direta entre empregado e empregador.
Vejamos o que diz o texto constitucional, e repita-se, está no rol de direitos fundamentais, estipulado como garantia: “irredutibilidade de salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.
Pois bem, lendo o texto friamente, a resposta seria claramente não. Ocorre que a resposta não pode ser simplesmente pela avaliação textual de um inciso da Constituição, tendo em vista que não há apenas esse direito fundamental na Carta Magna, bem como é comum a existência de colisões de direitos fundamentais que possuem solução diferente da simples análise de subsunção (tudo ou nada) ou de constitucionalidade.
Relevante destacar que o plano emergencial criado pelo governo através da MP 936/2020 se reveste da contribuição tríplice para manutenção dos empregos, no sentido de manutenção da paz social (direito garantido na CF) com contribuição do empregador, contribuição da própria União pagando parte da quantia devida aos empregados e abrindo linhas de crédito e contribuição do empregado, em sacrificar parte do que recebe mensalmente.
Importante frisar que a possibilidade da redução proporcional de jornada e de salários ou a suspensão temporária do contrato com diminuição de ganhos por parte do empregado é legítima, tendo em vista que se salário é a contraprestação pelos serviços, observe-se que não está havendo a prestação de serviço ou apenas a prestação parcial, respeitada a ausência de redução do valor da hora de trabalho (artigo 7º, I da MP), contudo, se está a manter um pagamento mínimo na tentativa de garantir a sobrevivência do próprio empregado e preservando sua saúde.
Outro ponto revelador diz respeito a grande massa de empregados que, ou não possuem sindicato em suas localidades, ou ainda aqueles sindicatos que infelizmente vendo a possibilidade de ganhar força acabam por não se dispor a realizar qualquer negociação coletiva sem excessivas contrapartidas que empregadores não podem arcar nesse momento histórico. Qual seria a solução? Aguardar um comum acordo para um eventual dissídio coletivo na situação em que nos encontramos?
Há ainda a inviabilidade de realização das próprias assembleias na forma procedimental constante na legislação. Outro relevante ponto. A MP 936/2020 traz claramente a determinação dos acordos serem informados aos sindicatos, como preceitua o artigo 11, parágrafo 4º, vejamos:
“§ 4º Os acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho, pactuados nos termos desta Medida Provisória, deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”.
Esse comunicado, no nosso modo de ver, torna diferida apenas a atuação sindical no caso de acordos individuais em razão da emergência do momento, pois eventual circunstância ilegal identificada pode ser objeto de ação própria no momento oportuno pelo ente sindical. Note-se ainda, que foram criados institutos próprios de pagamento aos empregados, que objetivam minimizar a dificuldade do momento, a saber: benefício emergencial de preservação no emprego e da renda, com pagamento pela união, e ajuda compensatória mensal paga pelo empregador, com natureza indenizatória.(artigo 9º da MP 936/2020).
Estabelece-se inclusive garantia provisória no emprego pelo tempo igual ao da suspensão ou redução da duração do tempo da prestação de serviços obedecendo a proporcionalidade dos salários. Aqui importante destacar, que as faixas criadas pelo Estado para a redução e suspensão individuais atingem os mais vulneráveis, bem como os ditos hipersuficientes. Àqueles, tendo em vista a necessidade da celeridade da medida, não sendo possível em muitas hipóteses aguardar uma intervenção dos atores sindicais, e estes, em clara obediência ao já preceituado na própria CLT, como empregados que possuem condições de negociar diretamente com seus empregadores.
É bem verdade que a MP cria uma espécie de tabela quanto as possibilidades de redução, implementando o tempo de dois dias para que o empregado responda. Aqui estamos perante uma adesão e não uma efetiva negociação. E como adesão, será vista em caso de judicialização do tema com o mesmo destino das regras normativas desse instrumento jurídico possivelmente, a exemplo a própria facilitação do ônus da prova. Some-se a isso a previsão de fiscalização e autuação por descumprimento das previsões constantes na medida provisória em seu artigo 14.
Dizer que a medida provisória é inconstitucional no que se relaciona aos acordos individuais a nós parece um equívoco, tendo em vista que esse quadro fático que se apresenta jamais foi enfrentado pelos nossos tribunais, não há enquadramento próprio da situação a casos anteriores, o que acaba tornando o terreno arenoso e arriscado para se assegurar fundamentos e experiências oriundas de outras demandas.
Também há previsão das negociações coletivas para a mesmas negociações individuais, fator que não podemos esquecer para a avaliação, devendo o empregador sempre que possível privilegiar aquelas. As normas estampadas no texto constitucional possuem caráter geral de princípios, servindo para externar o significado de regras menores, pois não se direcionam a fatos particulares como as regras.
No caso presente, ousamos arriscar - e com enorme respeito a vozes contrárias – que há evidente colisão de direitos fundamentais tendo em vista que o texto maior se apresenta com normas de proposições prescritivas que visam atender a causalidade do fato em jogo.
A regra de obrigatoriedade de atuação do ator sindical constante como direito fundamental, frente a outros princípios como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) que é um pilar do Estado democrático de direito; e como objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3, inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (artigo 3º, III); garantia do direito à vida e a liberdade (cabeça do artigo 5).
Esses pilares, objetivos e garantias de escopo fundamental quando entram em rota de colisão com outro direito ou outras garantias de mesmo jaez não podem ser simplesmente ignorados, havendo necessidade de se fazer uma regra de sopesamento do quadro fático (pandemia e urgência) que levam a um problema de saúde pública, causando mortes, impedindo praticamente o direito e ir e vir de cada cidadão, inviabilizando o próprio atendimento médico para muitos, tirando o poder de compra,afastando o direito à alimentação mínima, trancafiando uma miríade de vulneráveis.
Necessário se faz comparar toda essa situação através da regra de proporcionalidade com a previsão de que apenas o sindicato pode negociar a redução de salários e ponto. Noutras palavras, a ideia da proporcionalidade seria mitigar a densidade de uma dessas garantias ou direitos dando maior valor a outro direito ou garantia em razão da situação fática.
Interpretar a constituição é bem diferente de interpretação constitucional, como já disse o doutrinador. Aqui ao se aplicar os subprincípios da proporcionalidade, a saber: adequação (escolha da suspensão do contrato ou da redução da jornada com redução salarial); exigibilidade (utilização do meio mais suave de modo a preservar valores constitucionais), e por fim: a proporcionalidade em sentido estrito (se o meio é o mais vantajoso no sentido de promover direitos fundamentais constitucionais com o mínimo de desrespeito aos outros).
Somente com a visão de todo o ordenamento e em especial de todos os valores e garantias constitucionais, poderemos avaliar a complexa questão que estamos a enfrentar de colisões de direitos que fundamentam e dão eficácia ao próprio Estado Democrático de Direito.
A solução pode não ser a melhor e esperada, mas é constitucionalmente defensável e necessária em razão do momento histórico vivido. Em síntese, parece prevalecer nesse momento a ideia de validade dos acordos individuais, a fim de se promover outros valores de maior relevância constitucional nesse momento, com a ressalva de que posteriormente atuações desprovidas de boa-fé objetiva devem sentir o peso da lei no momento oportuno, seja pela ação do Ministério Público do Trabalho ou mesmo pelos entes sindicais que na forma da MP deverão ter ciência de tudo.
*Ricardo Pereira de Freitas Guimarães é advogado, titular da cadeira 81 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP e professor da pós-graduação da PUC-SP e dos programas de mestrado e doutorado da FADISP-SP