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Cultura

Foto: Divulgação

Descendente de escravos, integrante de quilombo, pedreira. Mãe de quatro filhos, Carlúcia de Melo Soares, de 27 anos, moradora de Arraias, no Tocantins, se prepara para lançar o documentário “Mulher Guerreira”, uma das 20 histórias selecionadas pela quinta edição do Revelando os Brasis.

O documentário será lançado no dia 25 de novembro, às 19 horas, na Praça da Juventude, em Arraias, no Tocantins, como parte da programação do Circuito Nacional de Exibição do Revelando os Brasis. Além do lançamento na sede do município, o filme será apresentado em uma tela de cinema para a comunidade do Quilombo Kalunga do Mimoso, em Arraias, no dia 27 de novembro, às 19 horas, numa área sem energia elétrica. O projeto é realizado pelo Instituto Marlin Azul com patrocínio da Petrobras.

Inaugurado em 22 de outubro, o Circuito Revelando os Brasis – Ano V percorrerá o país até 27 de novembro. Divididos em duas rotas, dois caminhões adaptados para se transformar em cabine de projeção vão percorrer cerca de 25 mil quilômetros, realizando 20 sessões de cinema ao ar livre nos 20 pequenos municípios com até 20 mil habitantes onde as histórias foram gravadas e sessões nas 15 capitais dos estados participantes. Os veículos levam tela de cinema, projetores e cadeiras.

Contemplando as cinco regiões brasileiras, o Circuito percorrerá em 35 dias localidades dos estados de Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

A nova edição é composta por 11 documentários e 9 ficções. Com roteiro, produção e direção dos autores selecionados, a mostra traz um conjunto de histórias sobre lendas, causos, crendices, personagens populares, tradições, destacando temas que registram a memória e a diversidade cultural brasileira e valorizam novos olhares sobre o Brasil.

O Revelando os Brasis promove a democratização do acesso aos meios de produção audiovisual, oferecendo aos moradores das pequenas cidades com até 20 mil habitantes a possibilidade de contar suas próprias histórias através do cinema.

História

Carlúcia nasceu em uma fazenda, no interior do Tocantins. Filha de produtores rurais, ela tem cinco irmãos. Aos 13 anos, saiu da casa dos pais para estudar, indo morar com a avó. Mas não conseguiu manter o ritmo de estudos porque precisou trabalhar como doméstica. Inicialmente, ganhava R$ 30,00 por mês. Com o dinheiro, comprava arroz e feijão que mandava para a família na fazenda e utilizava o pouco que sobrava para comprar material escolar. Em busca de uma condição melhor de sobrevivência, viajou para Goiânia (GO). Nesta época, passou a receber R$ 120,00 por mês, como doméstica.

Foi dispensada do primeiro trabalho, mas arrumou uma nova oportunidade na casa de uma mulher que vivia com o filho, um bebê de oito meses. Não recebeu no primeiro mês de trabalho e a patroa começou a trata-la como escrava, chegando a trancar a porta e a esconder a chave. Carlúcia não podia sair da casa, era obrigada a lavar roupa no meio da noite, sendo observada pela patroa durante todo o tempo, como uma prisioneira. Até os porteiros tinham ordem de não deixa-la sair do prédio. “Esta mulher costumava me dizer que preto tem que viver assim”, lembra.

Certa noite, a jovem aproveitou uma distração da patroa, que havia se retirado para tomar banho, e resgatou a chave do apartamento dentro da bolsa. Antes de fugir, lembrou-se de levar o santinho de Santa Luzia que havia recebido da sua mãe como sinal de proteção. Conseguiu se esconder na casa de um primo e acionar a justiça contra a ex-patroa. Por meio de decisão judicial, conseguiu receber R$ 200,00, mas foi obrigada a voltar para seu estado devido às ameaças que passou a receber.

Hoje, aos 27 anos de idade, Carlúcia tem quatro filhos, Luiz Henrique (9 anos), Gabryella (7 anos), Daniel (5 anos) e Kauán (4 anos). Os dois mais novos são filhos de Maurinho, seu atual marido, com quem aprendeu a profissão de pedreira. Quando se interessou pelo ofício, o esposo primeiramente a desencorajou e não se dispôs a ensinar a atividade.

“Ele não queria me ensinar porque eu era mulher. Mas eu disse que se ele não me ensinasse, eu iria aprender com outra pessoa. Então, ele aceitou. Eu sei levantar parede, rebocar, assentar porta e cerâmica, faço qualquer coisa”, relata Carlúcia que conta com o auxílio de um ajudante para preparar a massa, carregar o material e levantar os andaimes.

Moradora da Comunidade Quilombola Kalunga do Mimoso, Carlúcia atua na área há cinco anos e decidiu que irá fazer a faculdade de Engenharia Civil. “Para realizar este sonho, eu preciso fazer vestibular. Já peguei alguns livros pra estudar”, planeja.

Apesar do gosto pela profissão de pedreira, Carlúcia guarda um outro sonho, o de ser dançarina. Dona de um charme e beleza marcantes, ela dedica suas horas de folga à prática das danças tradicionais da região. “Lá em casa, quando estou sozinha, minha diversão é dançar”, acrescenta.

Antes de ser selecionada pelo Revelando os Brasis, ela também havia participado de um curso de produção cultural com duração de 10 meses, na Universidade de Palmas, em que aprendeu noções básicas sobre como montar uma história, fazer um vídeo e a fotografar, além de aprofundar valores como o respeito à igualdade racial.

A equipe do curso acabou por incentivá-la a se inscrever no Concurso Nacional de Histórias do Revelando os Brasis. Segundo a pedreira, o filme mostrará alguns momentos mais importantes da sua vida, a descoberta da profissão na área da construção civil e o amor pela dança.

“Meu marido não queria que eu fosse para o Rio de Janeiro participar das Oficinas Audiovisuais. Mas quando quero uma coisa, eu faço. Não posso viver só a vida dele. Eu aceito que ele faça as coisas que quer, então, eu disse que queria realizar este projeto. Minha mãe cuidou das minhas crianças durante o dia e meu marido na parte da noite”, relata.

A oportunidade de aprender coisas novas e de fazer amizades marcou a experiência da autora após o projeto. “Aprendi o modo e a hora certa de filmar, a posição da câmera, como organizar o filme com começo, meio e fim. Quando vejo um filme agora, enxergo o enquadramento e assisto de outra forma”, relata a diretora que já está planejando produzir uma outra obra audiovisual, desta vez, sobre as danças tradicionais locais.

Revelando os Brasis

Lançado em 2004, o Revelando os Brasis realizou quatro edições que resultaram na produção de 180 obras, entre ficções, documentários e uma animação. Depois das histórias selecionadas, os autores participam de uma oficina audiovisual com duração de 15 dias, no Rio de Janeiro, onde aprendem noções básicas de roteiro, direção, produção, direção de fotografia, direção de arte, som, mobilização comunitária. Após o curso, os autores retornam às cidades para a gravação dos filmes com o acompanhamento de uma produtora custeada pelo projeto e a participação de membros da comunidade em funções artísticas e de produção.

Na etapa de difusão, os filmes são apresentados nas comunidades e nas capitais através de sessões de cinema com entrada franca em praças e ruas dos municípios. Na fase seguinte, as produções do projeto ganham lançamento em DVD com distribuição gratuita entre organizações sociais e culturais, bibliotecas, universidades e cineclubes de todo o Brasil. Promovido em 2013, o 5º Concurso  Nacional de Histórias do projeto recebeu 951 inscrições.