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Opinião

Foto: Divulgação

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No último dia 21 de dezembro, por meio de um comunicado conjunto, a estadunidense Boeing e a brasileira Embraer tornaram pública a existência de tratativas em relação a uma potencial combinação de seus negócios. A iniciativa segue aos eventos de outubro do ano passado, quando a europeia Airbus, principal competidora da Boeing, adquiriu a participação majoritária no programa de jatos C-Series da canadense Bombardier – principal concorrente da Embraer no mercado de aeronaves comerciais regionais. No entanto, a despeito do anúncio da Boeing e Embraer, a formalização e o formato do negócio seguem indefinidos, sobretudo pela necessidade de aprovação do governo brasileiro.

Empresa de capital aberto, a maior parte das ações da Embraer encontra-se sob posse da gestora norte-americana Brandes Investments Partners, a qual exerce controle sobre 14% das ações da empresa. Ainda que com participação restrita a 5,4% das ações, o governo federal possui a prerrogativa da golden share, o que permite o controle sobre decisões estratégicas da empresa e, potencialmente, o veto a qualquer tipo de fusão ou aquisição. O governo brasileiro já se manifestou contrário a qualquer negociação envolvendo o controle acionário da Embraer, sob o argumento de manutenção de prerrogativas estratégicas. No entanto, cabe destacar que, em meados de 2017, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, encaminhou ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma consulta para saber como alterar as regras das golden shares.

Ainda que membros do governo federal garantam a preservação das regras referentes a questões de defesa em caso de mudanças nas golden shares, não há clareza sobre a real abrangência das intenções da Fazenda.

Ainda que tal mecanismo também exista para outras empresas, a golden share no contexto da Embraer possui maior relevância estratégica por sua importância para a base industrial de defesa do país, traduzida especialmente na estreita relação com os projetos da Força Aérea Brasileira (FAB). Única empresa brasileira a figurar no ranking das 100 maiores empresas de defesa do mundo, as vendas de armamentos representaram 15% de todos os negócios realizados pela Embraer em 2016, segundo dados organizados e disponibilizados pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Ainda de acordo com o SIPRI, as vendas de armamentos da Embraer cresceram 10% entre 2015 e 2016, atingindo a cifra de US$ 930 milhões – 0,2% do total de armamentos vendidos pelas 100 maiores do mundo. Em comparação, as vendas da Boeing em 2016, segunda maior empresa de defesa do mundo, totalizaram US$ 29 bilhões – ou 7% das vendas de armamento das maiores empresas de defesa do mundo. Dessa forma, perante tamanha discrepância de capacidades e dimensão, as incertezas e preocupações em torno de uma possível aquisição pela Boeing são ainda mais agudas quando considerada a atuação da divisão de Defesa e Segurança da empresa brasileira.

A redução nos orçamentos de defesa após a Guerra Fria, em conjunção com fatores de natureza tecnológica e de doutrina militar, implicou em significativas transformações na organização da indústria de defesa em nível mundial. Foi durante esse período que a Boeing se consolidou como uma das maiores empresas de defesa dos Estados Unidos e do mundo. Os elevados custos envolvidos no desenvolvimento e produção de novos armamentos, gradativamente mais complexos em termos tecnológicos, e as dificuldades em garantir escala produtiva a partir do mercado doméstico, impulsionaram a internacionalização da produção de armamentos. Uma das principais consequências desse processo foi o agravamento das barreiras à entrada de novos concorrentes no mercado de defesa. 

A despeito dessa configuração internacional, sob a qual tornou-se virtualmente inalcançável o objetivo de produção autárquica de armamentos, a maior parte dos produtores marginais ao núcleo orgânico do sistema internacional tende a enfatizar objetivos de autossuficiência em relação ao desenvolvimento e à produção de armamentos. Os recentes documentos de Defesa brasileiros, cujas atualizações foram encaminhadas para a apreciação do Congresso Nacional no final de 2016, elencam como um de seus objetivos a promoção da autonomia produtiva e tecnológica na área de Defesa.

A almejada independência de provedores externos no âmbito militar elevaria o grau de autonomia estratégica do país, entendida como condição para ampliar a liberdade da decisão política independente de constrangimentos impostos por Estados mais poderosos. Pelo reconhecido know-how em projetos da área de tecnologia militar, bem como pelo estreito relacionamento com as Forças Armadas brasileiras, o braço de Defesa e Segurança da Embraer é parte fundamental na concepção e execução dos meios requeridos para a tentativa de alcançar tal objetivo. Atualmente, a empresa participa em diversos projetos estratégicos das Forças Armadas do país, como o Prosub – por meio de sua subsidiária Atech – e o SISFRON – por meio de sua subsidiária Savis –, além de projetos relacionados à FAB. 

No âmbito do projeto FX-2, voltado para o desenvolvimento e aquisição de novos caças multipropósito para a FAB, a Embraer é a empresa líder nacional no acordo junto à sueca Saab para o projeto do Gripen. Além de importante ator no processo de transferência de tecnologia – que, dentre outros mecanismos, tem se desenvolvido por meio do Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen, inaugurado em 2016 –, também será responsável pelo desenvolvimento completo da versão biposto da aeronave, em conjunto com a Saab, compartilhando com a empresa sueca a design authority do Gripen E/F. Nesse sentido, cabe destacar que a Boeing, por meio da proposta do F-18 Super Hornet, foi parte derrotada na concorrência pelo contrato de aquisição de novos caças para a FAB, o que leva a questionamentos acerca das potenciais consequências das negociações entre Boeing e Embraer sobre as tecnologias obtidas no escopo da parceria com a Saab, bem como sobre o futuro do programa Gripen. 

Dessa forma, é preciso ter em mente que, a depender dos termos acertados em uma possível negociação, a aquisição da Embraer pela Boeing pode, no limite, representar a renúncia do já debilitado objetivo de autonomia tecnológica no setor industrial militar. Se o atual governo decidir de modo favorável à aquisição – com ou sem a golden share –, que não seja respaldado exclusivamente pela falsa percepção da ideologia do mercado difundida por alguns comentaristas, os quais, presos aos benefícios comerciais da associação entre as duas empresas, perdem de vista suas potenciais consequências políticas. Durante cerimônia de almoço entre membros do governo federal e os oficiais generais das Forças Armadas, o Comandante da Aeronáutica, Brigadeiro Nivaldo Rossato, parafraseou um conhecido texto de Napoleão Bonaparte para afirmar que “não há nada mais precioso do que saber decidir”. Frente ao cenário que se avizinha, mais do que saber decidir, cabe ao governo a sensatez de compreender a importância de também poder decidir.

*Jonathan de Araujo de Assis é Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp – Unicamp – PUC/SP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).