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Opinião

Foto: Divulgação

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Há poucos conceitos das ciências sociais tão presentes no vocabulário popular atual quanto o de democracia. Basta abrir qualquer jornal ou revista de ampla circulação, ligar a TV em uma grande emissora ou acessar as mídias sociais na internet para que, quase invariavelmente, a temática da democracia nos salte aos olhos em pouco tempo. De fato, talvez estejamos vivenciando um momento único na história do País, no qual o debate político assume protagonismo inédito e a democracia, por conseguinte, torna-se objeto de maior atenção na vida pública. Porém, para além do lado positivo dessa “cheia” da política na sociedade brasileira, que coloca temas de importância primordial no centro das discussões, é preciso também considerar o lado negativo que esse momento nacional pode suscitar, representado, por exemplo, por uma compreensão pouco rigorosa, ou mesmo equívoca, do significado e das implicações da democracia.

Um artigo recente de pesquisadores associados ao World Values Survey (Pesquisa Mundial de Valores) encontra evidências para esse fenômeno: analisando dados de 60 países ao redor do mundo, inclusive o Brasil, observou-se que em muitas populações prevalece um entendimento ambíguo da democracia, de modo que noções autoritárias se misturam com aquelas mais propriamente democráticas [2]. Essa confusão conceitual, contudo, não deveria nos espantar, uma vez que, mesmo nos círculos de especialistas, já se tornou praticamente lugar-comum reconhecer a complexidade e a ausência de definição consensual da democracia. Mas, se compreender a democracia é algo tão complicado assim, que alternativa nos resta que não seja aceitar a fluidez e a imprecisão do conceito? Estaríamos fadados a nos resignar diante da subjetividade em matéria de democracia, que, no final das contas, não passaria de um instrumento de retórica?

A resposta da Ciência Política face a essa problemática tem sido, no geral, a de que devemos, sim, esforçar-nos para chegar a uma noção mais acurada de democracia. Tais esforços se dariam especialmente por meio da sua mensuração, já que, enquanto procedimento científico, o processo de operacionalização de conceitos abstratos em variáveis concretas contribui para o entendimento dos fenômenos sociais. Nesse sentido, tentou-se contornar as dificuldades de definição aderindo a uma visão minimalista de democracia, a qual postula, grosso modo, que a sua condição necessária e suficiente seria a ocorrência de eleições livres e competitivas em intervalos regulares de tempo. Sendo assim, bastaria mensurar a presença da dimensão eleitoral em determinado contexto político ao longo dos anos para saber se ali vigora ou não um regime democrático. Porém, essa é uma solução que fica aquém do desejado, vide a existência dos chamados regimes híbridos, caracterizados pela presença simultânea de autoritarismo e competição eleitoral, em vários países na contemporaneidade.

Na mesma linha do minimalismo, por muito tempo vigeu uma tradição em política comparada segundo a qual a democracia seria um conceito binário, o qual estaria presente ou ausente no contexto de uma determinada sociedade. Hoje em dia, no entanto, sabemos que as democracias variam consideravelmente em suas configurações e qualidades, havendo ampla aceitação entre pesquisadores da democracia enquanto um fenômeno complexo, multidimensional e sistêmico, cuja avaliação depende da mensuração de uma série de variáveis. Paralelamente ao reconhecimento da complexidade do fenômeno democrático, também é crescente a pressão para usar ou desenvolver novos indicadores de democracia, na medida em que a sua promoção se tornou uma meta explícita na política externa de diversos países e que o debate sobre a falência democrática se acentuou no mundo todo. Há, portanto, certa tensão entre a natureza complexa e mutante do sistema democrático e a demanda por novas e precisas mensurações, de modo que o momento atual se apresenta enquanto desafio e oportunidade para os estudiosos do tema.

Um interessante, mas pouco explorado, caminho para pesquisas e iniciativas com vistas a um revigoramento da democracia passa por um olhar mais atencioso sobre o nível local.  Atualmente, parece inegável que as crises democráticas pelo mundo podem ser explicadas, pelo menos em parte, por um processo de desencantamento dos cidadãos com a política institucional, que é vista como algo muito distante do seu cotidiano. Diante desse panorama, o Instituto Sivis desenvolveu o Índice de Democracia Local (IDL), um instrumento de mensuração da democracia no seu nível mais próximo dos cidadãos, isto é, nas cidades, onde ela deve ser cultivada e florescer por meio do processo cívico de engajamento político no qual a sociedade civil assume protagonismo.

Neste ano, o IDL foi aplicado na cidade de São Paulo e terá seus resultados divulgados no dia 5 de dezembro. Partindo de um entendimento multidimensional da democracia, que engloba não apenas a dimensão eleitoral, mas também a participativa e a cultural, os resultados do IDL servirão tanto para avançar o conhecimento sobre o regime democrático na maior metrópole brasileira quanto para fomentar iniciativas que visem a dar um novo fôlego para a vida política nacional. Desse modo, estamos confiantes de que, com o IDL, dá-se um importante passo em direção a um entendimento mais aprofundado da democracia no nosso país que poderá render valiosos frutos em termos de ações do poder público e da sociedade civil para a transformação do Brasil em um país mais colaborativo, honesto e orientado à democracia.

*Diego Moraes é pesquisador do Instituto Sivis e doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).