Que a democracia representativa está em crise, aqui e alhures, não há como duvidar. O tema tem sido recorrente na mídia e nos trabalhos da Academia. Para amparar a tese, ora recorre-se aos mecanismos tradicionais da política, cuja deterioração se acelerou no final da década de 80, com a queda do Muro de Berlim; ora se pinça a lição de Norberto Bobbio, que lembra as promessas não cumpridas pela democracia.
Na primeira leva, mostra-se a derrocada das ferramentas clássicas da política, como a crise das ideologias, a pasteurização dos partidos políticos, o declínio dos Parlamentos, o arrefecimento das oposições, a desmotivação das bases eleitorais, a exacerbação do presidencialismo, com seu sistema perverso de cooptação, entre outros fatores. Em contraponto, criam-se novos polos de poder, como as entidades de intermediação social.
Na segunda vertente, a do filósofo italiano, descrevem-se as falhas dos sistemas democráticos, que prometeram eliminar o poder invisível, mas têm fracassado; dar um fim às oligarquias, proporcionar transparência aos governos e expandir os valores da cidadania, a partir da elevação dos níveis educacionais. Em seu livro O Futuro da Democracia, Bobbio descreve amplo cenário dos horizontes democráticos.
É evidente que, a cada ciclo histórico, novos ingredientes são acrescidos às planilhas que tratam da crise da democracia. Por isso, quando se planeja algum evento sob a chancela de “crise” na contemporaneidade das Nações democráticas, deve-se entender que as pautas a serem debatidas tratam de questões emergentes, algumas de caráter pontual, outras agravadas pela cultura política que integra a identidade do país em questão.
Vejamos, por exemplo, dois temas que estão na nossa ordem do dia: a politização das Forças Armadas e a “milicialização” das Polícias Militares. Assuntos que expõem a índole militar-autoritária do nosso presidente. De pronto, líderes desses dois contingentes poderão refutar: “não ocorre isso”. Trata-se de exagero por parte de jornalistas, políticos e analistas. Os temas até podem contemplar uma dose de exagero. Mas a quadra que estamos vivendo sugere que eles ameaçam os horizontes democráticos. Daí necessidade de abrir o debate.
A politização das Forças Armadas leva em conta o circulo de generais convocados para estar ao lado do presidente da República. Há duas visões sobre o tema: uma, integrada pelos participantes da roda, nega peremptoriamente a incursão das FAs na política. A não ser que seus integrantes o façam pela via partidária. Coisa que, aliás, se observou na eleição de militares em 2018. Outra ala, ancorada no profissionalismo, defende militares da ativa fora da política e atuando de acordo com a letra constitucional. O comandante do Exército, general Edson Pujol, lideraria essa linha.
Já quem passa para a reserva assume o papel de civil, e assim devem ser considerados os generais aposentados que formam o “núcleo duro do governo”. Mas o fato é que, de pijama ou sem, o número de generais convocados pelo presidente para lhes dar ajuda no Palácio do Planalto chama a atenção. São vistos como a força dos quartéis, sob a imagem de que constroem uma fortaleza de defesa presidencial. Esse traço exerce temor junto à parcela da sociedade e da esfera política.
A índole militar do presidente acaba funcionando como bastião contra eventuais ameaças externas. Quanto à milicialização das PMS, a inferência negativa é até maior, na esteira do que se passou no Ceará. Teria havido ali um “motim”? Policial pode fazer greve? Por indução, entende-se que os “amotinados”, sob a bandeira de melhores salários, poderiam se multiplicar País afora. Lembre-se que o termo “milícia” é empregado com certa malícia (sem trocadilho) para designar bandidagem, certamente com a intenção de interligar as milícias no Rio de Janeiro (e figuras ligadas à família Bolsonaro) com os quadros policiais nos estados. Ao fundo, a lembrança de que a vida política do presidente Jair começou com a defesa de aumento de soldos para seus colegas.
Em suma, os dois temas são banhados pelas águas da polarização que toma conta do País. Sua inserção nos foros de discussão se justifica, até para que se dissipem dúvidas sobre intenções de duas forças que entram na lupa social.
O Instituto Brasil Mais Plural, formado por cientistas políticos, jornalistas, juristas e advogados, economistas, pessoas de denso pensamento, prepara para início de maio, em parceria com o CIEE - Centro de Integração Empresa-Escola, um seminário em São Paulo sobre os fenômenos que pairam sobre nossa democracia. É hora de discuti-los à luz do bom senso.
*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato