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Opinião

Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP

Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP

O voto, a maior arma de defesa da democracia, está deixando o coração para subir à cabeça. A hipótese pode até parecer estrambótica nesses tempos de intensa polarização, quando o frenesi das emoções parece ganhar de capote para o jogo da razão. Enganam-se, porém, aqueles que imaginam emoção como sinônimo de explosão, catarse, palavras de baixo calão (que passaram a frequentar a linguagem dos governantes), slogans, refrãos, culto aos mitos. Quando alguém, ante uma tragédia como a que estamos vivenciando com a pandemia do Covid-19, diz - “nunca vi tanto desgoverno, não aguento mais, estou arrependido do meu voto na última eleição” - está falando pelo coração ou pela cabeça?

À primeira vista, as expressões parecem sair das veias do coração. Ocorre que elas são o resultado de um somatório de conhecimento, acompanhamento da política, comparação com outros ciclos históricos, observação acurada do que se passa ao redor. Nesse caso, temos de convir que um processo racional se desenvolveu. A razão prevaleceu, admitindo-se, claro, que coabita com a emoção na vida dos interlocutores. O fato é que, nas últimas décadas, decepcionadas com representantes e governantes, as pessoas dão as costas à política e iniciam uma jornada de revisão em sua maneira de escolher os quadros públicos.

Na Europa, o desenvolvimento do sentido crítico ocorre ao longo dos ciclos políticos. Políticas sociais fracassadas, os desvios da socialdemocracia, projetos liberalizantes que não deram certo, projetos inadequados e mesmo a corrupção têm sido o pano de fundo para a alteração dos comandos entre partidos. O afastamento de uns e a chegada de outros ao poder ocorre sob o fluxo de um conceito que os franceses designam como “autogestão” técnica, pelo qual as pessoas definem o que esperam e o que querem dos governos e estabelecem meios e condições para atingir sua meta. Nos EUA, onde dois partidos dominam a cena, democrata e republicano, é mais fácil selecionar representantes e governantes. Vota-se naquele que melhor atende as expectativas do eleitor.

Por nossas plagas, a paisagem é deserta. De ideias e líderes. Imensos buracos negros se multiplicam na constelação política, abertos pela ausência de expressões de porte, quadros qualificados, pensadores e formuladores políticos de alta densidade. Não se formam mais políticos como antigamente.  Lembre-se, no entanto, que mudaram as condições da política. Os parlamentos já não têm mais a força de antigamente, as oposições perderam parte de seu tradicional vigor, o discurso se torna grupal/partidário/fisiológico, enquanto as tribunas não conseguem traduzir a liturgia e o calor dos grandes embates.

O carisma, brilho próprio e nato que serve para emoldurar perfis, também fenece sob a frieza calculista da política de resultados.  As causas nacionais cedem lugar a interesses de grupos e setores. As linguagens se aproximam. Os comportamentos se igualam. O varejo se instala na esteira do conceito da política, que deixa de ser missão para ser profissão. A ética ganha contornos adjetivados para servir às circunstâncias.

A coragem, a audácia, o zelo e a obstinação, valores inerentes às lideranças, tornam-se escassos. O rigor na apuração de escândalos só ocorre sob o paredão de pressão da opinião pública. Quando a sociedade reclama, o sistema político corta dedos para não perder os braços.

E o que faz o líder? Defende frentes de interesse. Grupamentos corporativos. A liderança natural está agonizante. O caso de Lula é emblemático. Seu estoque de carisma está se esvaziando. Tem o PT como seu trono, onde assume o papel de onipotente e onisciente. Diz que o PT não assina lista de Frente Ampla porque o partido não é mais aquele do dito politicamente incorreto: “Maria vai com as outras”. Falha de razão e excesso de emoção.

A esfera política não vê a nova identidade em desenvolvimento no Brasil. Que cresce sob o signo da razão, do planejamento, do aproveitamento de oportunidades. No paiol das lideranças, as cores da mesmice se instalaram há muitos anos, gerando um discurso que não afeta, não entusiasma, não entra na alma. Nomes ali expostos são os mesmos de 20, 30 anos atrás.

Nesse ano de pandemia, a ser seguido pelo calendário eleitoral, o superlativo dominará a expressão política, a verdade se cobrirá com as cores de fake news, e o mundo real dividirá suas cores com o mundo virtual. Esperemos que a passarela entre esses dois universos seja pavimentada pela prevalência da razão sobre a emoção. E que não deixemos a polarização eleger radicais. Que o cabo de guerra seja substituído pelo tronco da paz.

*Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação