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Opinião

Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP

Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP

O maior mal que o planeta terra conheceu em toda a sua existência. Bilionários dos universos da mídia, dos divertimentos, poderosos de governos de todos os regimes do mundo – capitalismo, socialismo, comunismo – ditadores, atores e atrizes, investidores das bolsas, enfim, gente de todos os espectros se juntam, sob a conspiração de políticos norte-americanos, com destaque para Obama, Bill e Hillary Clinton, para varrer a população mundial. O único homem de coragem que enfrentou o Deep State (Estado profundo) foi Donald Trump.

Este é o resumo do vídeo que se espalha nas redes sociais, cujo título Trump- Q- Anon- Aliança conclui com uma provocação à audiência: “alguma vez já se questionou o porquê vamos à guerra ou o porquê nunca consegue sair do vermelho”? Houve presidente que até tentou lutar contra os inimigos, como Kennedy e Reagan, mas foram vencidos pela “cabala”, a teia criminosa contra a Humanidade.

A descrição da tramoia montada para destruir as Nações é tão virulenta que até a interpretação do professor Samuel Huntington em seu livro “Choque de Civilizações” vira café pequeno, como pode se ler na descrição sobre o paradigma do caos: “Quebra da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente, onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, declínio na confiança e na solidariedade social, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver”.

Para fechar o círculo, a pergunta: qual o objetivo do filmete e quem estaria por trás de sua inspiração? Fica explícita a manifestação em prol de Trump, candidato à reeleição dos EUA, adornado com as vestes do Santo Guerreiro contra as forças demoníacas que conspiram, com a ajuda da tecnologia e monitoramento dos dados de cada pessoa, para implantar o império da devastação. E mais: não há ideologia por trás da artimanha. Ou seja, não se trata de uma disputa entre liberalismo e comunismo, nem de brancos contra negros, nem de jovens contra velhos, mas de gananciosos e exploradores que desejam se locupletar de riquezas. Exemplo? George Soros.

Esse movimento teve início em 2017 por uma pessoa que usou a letra Q, acusando atores de Hollywood, democratas e altos funcionários do governo de serem cúmplices de uma rede de tráfico sexual de crianças. Travis View, que escreveu sobre o movimento no The Washington Post, resume a farsa: “existe uma cabala mundial de pedófilos que adoram Satanás e governam o mundo, essencialmente, controlam tudo, desde políticos e donos da mídia... teriam continuado governando, não fosse a eleição do presidente Donald Trump”.

Coincidência ou não, o fato é que o Anon do título do grupo, cujas contas foram banidas pelo Twitter, bate com o final do sobrenome de Steve Bannon, o estrategista de extrema direita, preso semana passada pela acusação de ter se apropriado de dinheiro para a construção do muro na fronteira entre México e EUA. Sem provas que possam ligá-lo ao movimento, fortes indícios entre seu pensamento e o núcleo de simpatizantes trumpistas ecoam pela esfera política. Mesmo afastado de Trump por discordâncias no início do governo, correm rumores de que Bannon é usado por grandes patrocinadores interessados na reeleição do presidente.

Dito isto, emerge a observação: as redes sociais constroem narrativas que atraem a atenção de eleitores, influenciando seu voto. Um pouco de história. É mais que sabido o que os apologistas da propaganda política são capazes de fazer, sob a mensagem subliminar de símbolos que geram medo, plasmando o caos, caso fulano ou beltrano chegue ao poder. Foi assim com Hitler e seu ministro da propaganda, Goebbels, ele mesmo um filólogo que estudou os gritos de guerra dos gregos (alalá!), o clamor dos romanos, o barditu dos germanos, exemplos de tóxicos sonoros.

Bolaram a cruz gamada como o símbolo de uma cruzada. O traçado nada mais era do que um velho signo hindu, a svastika, muito reproduzida em vestígios de civilizações na Ásia, África e até na América. Representava a roda e também o sol. Em rotação, a cruz gamada transforma-se numa roda, e olhando-se fixamente para ela, pode-se ter o efeito de vertigem.

Em suma, o filmete Trump Q-Anon quer entorpecer mentes. É bem composto, empregando imagens de guerra e destruição, recortes de encontros entre governantes, desfiles, bandeiras americanas, atores e atrizes. Não é de admirar que logo reapareça nas nossas redes a propagar a luta do Bem contra o Mal. E a tentar demonstrar que o covid-19 é o próprio satanás entrando no nosso corpo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato.