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Opinião

O tema começa a frequentar os foros mais avançados da democracia: a influência da tecnologia e da inteligência artificial na esfera da política. O pressuposto central é o de que a personalidade de uma pessoa pode ser decifrada por processos de reconhecimento facial, que tem como base os estudos feitos por um controverso professor da Universidade Stanford, o polonês Michal Kosinski. A polêmica ganha intensidade desde a campanha americana de 2016, a da eleição de Donald Trump, que teria usado algoritmos extraídos de feições para identificar a orientação política de eleitores. E, a partir daí, influenciá-los com intensas cargas de conteúdos.

À sombra dessa hipótese, como pano de fundo, desenham-se imensos painéis que tratam da crise da democracia, do conflito recorrente entre o escopo do liberalismo e o ideário democrático (podem conviver ou tendem a se afastar?), os sistemas partidários e seus caminhos pelo centro, pela esquerda ou pela direita, o nacional-populismo, com seu movimento de vaivém.

Bobbio, em seu clássico O Futuro da Democracia, faz um alerta: “o pensamento liberal continua a renascer, inclusive sob formas capazes de chocar pelo seu caráter regressivo, e de muitos pontos de vista ostensivamente reacionário, porque está fundado sobre uma concepção filosófica da qual, agrade ou não, nasceu o mundo moderno: a concepção individualista da sociedade e da história. Concepção com a qual a esquerda jamais fez seriamente um acerto de contas”. O filósofo italiano preocupava-se com o desmantelamento do estado assistencial.

Não por acaso, o nacional-populismo tem expandido seus laços, fazendo emergir no palco da política figuras estrambóticas, impregnadas dos ideais de defesa de suas Pátrias contra “invasões alienígenas”, nesse caso os imigrantes, acusados de sugar riquezas nacionais, de aumentar a desigualdade e contribuir para avolumar os índices de insegurança pública. Com este discurso, tocam fundo no coração de uma “supremacia branca”, esta que se mostra capaz de ameaçar a estabilidade dos países democráticos.

Essa é a moldura sobre a qual se projetam as ferramentas da tecnologia e da inteligência artificial. Ou seja, pelo andar da carruagem, a impressão é a de que o planeta caminha celeremente na trilha do Grande Irmão, o Big Brother, com seus olhos vigiando todos e tudo, extraindo insumos, dados e informações para alimentar os protagonistas do nacional-populismo, reforçando seus poderes, criando em torno deles a figura do mito e puxando a sociedade para os domínios do autoritarismo. Essa caminhada terá muito fôlego, não sendo coisa passageira, exatamente pelo quadro de deterioração que corrói democracias.

Não se chegou, ainda, ao ponto de equilíbrio, pois os espaços do arco ideológico se imbricam e se confundem, a ponto de não se saber mais como caracterizar os sistemas políticos: Sociais-Democráticos? Socialistas? Comunistas? Esquerdistas com certo viés democrático? Direitistas conservadores em defesa de valores tradicionais? Capitalistas de Estado como a China? (Que coisa esquisita essa mimese camaleônica que mescla Estado Autoritário com Estado Democrático de Direito, base do sistema capitalista).

Sobre esse espectro trabalha a engenharia da inteligência artificial, cujos impactos sobre a política são imprevisíveis. Imagine Fulano da Silva, andando no meio da multidão, apressado para não perder o compromisso, sendo capturado por milhares de micro-câmeras, que pinçam seu estado d’alma, preparando-o para se transformar em um “mutante político”? Esse retrato se parece com o quadro pintado por George Orwell no romance Big Brother, de 1984. Entra novamente na mesa de debates o criminalista italiano Cesare Lombroso, defensor da ideia de que criminosos podem ser identificados por suas características físicas. A tese lombrosiana, rechaçada por muitos, agora recebe o impulso da tecnologia. Que tempos estranhos.

O tema volta a esquentar os ânimos nesse momento em que a maior democracia ocidental, os EUA, padece do assalto ao Capitólio, em Washington, evento que abala a confiança da sociedade sobre a capacidade do país suportar a ascensão de políticos batizados nas águas da imponderabilidade.

O fato é que, a cada dia, os horizontes democráticos são cobertos por nuvens escuras.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato.