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Opinião

Foto: Divulgação

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O Brasil há tempos vem sofrendo com a negligência estatal relativamente ao sistema carcerário. O cenário das penitenciárias pelo país é degradante. Superlotação de celas, falta água e higiene, comida de qualidade questionável, além da infestação de ratos, baratas, insetos e doenças. Com a pandemia da Covid-19 esse quadro caótico vem se acentuando nos últimos meses, com mortes decorrentes da falta de atendimentos médicos dignos. Um levantamento recente, produzido pelo Portal G1, revelou que hoje são 682,1 mil presos nos 26 estados e no Distrito Federal. Entretanto, a capacidade atual do sistema é de 440,5 mil. Ou seja, existe um déficit de 241,6 mil vagas no Brasil. O estudo apontou que o Estado do Amazonas é o primeiro lugar em superlotação. São 10.692 presos para apenas 3.610 vagas.

Existe um paradigma criado no subconsciente das pessoas que o condenado ou o preso provisório, por serem responsáveis – em tese – pelos atos que cometeram, devem receber do Estado um castigo severo e desumano. Ou seja, seres humanos entendem que seus semelhantes, por serem condenados por algum crime, devem ser tratados com desumanidade, pois “fizeram por merecer”.

Em verdade, os reeducandos sofrem uma dupla sanção: uma decorrente da pena privativa de liberdade imposta pelo Estado-Juiz, outra das condições sub-humanas que vivem ao ingressarem em uma penitenciária. Os detentos além de serem meros números de registro, são tratados como verdadeiros animais, independentemente do crime que cometem.

Os presos não têm condições dignas sequer para dormir e se alimentar adequadamente. Dormem amontoados, muitas vezes em pé ou sentados. Por outro lado, em relação à alimentação fornecida, como regra, por empresas terceirizadas, que buscam exclusivamente o lucro oferecendo produtos de baixíssima qualidade nutritiva, há relatos de presença de cacos de vidro, fezes de animais, espermas etc., ou seja, uma visceral e aberrante afronta à dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Este cenário dantesco e kafkiano está em evidente choque com o princípio da dignidade humana, um dos fundamentos mais caros do Estado Democrático de Direito. Dessarte, por ser fundamento do Estado Democrático de Direito, torna-se o elemento referencial para a interpretação e aplicação das normas jurídicas. O ser humano não pode ser tratado como simples objeto, como ocorre, infelizmente, na grande maioria das penitenciárias brasileiras.

O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento básico de um estado democrático de direito, em que o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais é essencial e inalienável. Desrespeitá-lo é rasgar o primado insculpido no artigo 1º, III, da Constituição da República.

O Supremo Tribunal Federal, analisando a medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, de relatoria do ministro Marco Aurelio Melo, em 9 de setembro de 2015, afirmou que cenário de violação, massiva e persistente, de direitos fundamentais dos presos, são fruto de falhas estruturais e a falência de políticas públicas – circunstância a reclamar a adoção, pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, de medidas abrangentes, de natureza normativa, administrativa e orçamentária, mas nada foi feito para modificar esse estado de coisas.

Luiz Carlos Valois, em suas reflexões sobre o estado de coisas inconstitucionais dos presídios brasileiros, traz uma questão relevantíssima, que poderia ser útil para que os juízes pátrios repensassem e tornassem efetivamente a prisão a última alternativa, senão vejamos: “Talvez se mais profissionais do direito visitassem o cárcere, e não só o juiz e o promotor da Execução Penal, prisão realmente se tornasse “ultima ratio”, mas a prisão fica longe do Fórum, do coração e da mente daqueles que trabalham mandando e mantendo pessoas encarceradas”.

Infelizmente, raríssimos juízes e promotores deixam seus gabinetes para verificar as masmorras medievais que são submetidos os presos brasileiros. Se fossem visitar teriam mais cautela ao determinar prisões cautelares e mesmo na fixação de regimes iniciais de cumprimento de pena.

A realidade do sistema penitenciário, que teria por objetivo a regeneração dos condenados, readaptando-os à vida social, é diametralmente o oposto, na medida em que os presos sofrem severos castigos, são tratados feito animais abandonados numa condição sub-humana.

Como solucionar essa questão? Há que se pensar, urgentemente, em uma política séria e concreta de desencarceramento, especialmente se considerarmos que a esmagadora maioria da clientela dos cárceres brasileiros são autores de pequenos crimes contra o patrimônio (furto e roubo como regra) e pequenos agentes do tráfico. Deve-se reservar as prisões para os crimes graves e violentos, segredando da sociedade pessoas que efetivamente possam causar riscos evidentes para a sociedade.

A liberdade deve ser verdadeiramente a regra e o encarceramento a exceção. Ora, a liberdade é o princípio constitucional mais importante, uma vez que sem ela a própria vida perde seu significado. A fala de Dom Quixote ao seu fiel escudeiro Sancho Pança, serve para se pensar a importância da liberdade e a necessidade de se rever a política de encarceramento em massa do sistema penal brasileiro: “A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens”. 

Marcelo Aith é advogado especialista em Direito Público e professor convidado da Escola Paulista de Direito (EPD).