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Opinião

A produção deste artigo está vinculada a uma entrevista publicada no dia 20 de junho, no jornal Agora São Paulo, sobre a pandemia do coronavírus. A frase "Vi centenas de pais enterrando os filhos, o que não é normal", colocada por um dos sepultadores do cemitério da Vila Formosa, chama a atenção pela sensibilidade e pela inversão da suposta "ordem natural" da vida.

Quando uma vida surge, inicia-se uma história e nela surge inúmeros personagens compondo o enredo de uma biografia que ainda será escrita, inicialmente, com a ajuda da família, e depois, de forma independente. Da mesma maneira que a vida de uma pessoa adulta transforma-se, ao longo desta, em momentos históricos personificados, que permitirão o reviver por meio da memória do que fora vivido. Pois ao ser contado aos mais jovens, é possível se ter noção de onde vieram (passado), mas principalmente, auxiliando no entendimento do que representam e quem são (presente), no seio familiar.

Portanto, os jovens são vistos como o futuro e os mais velhos como história e não se espera que o futuro morra e nem que a história se apague. Logo se não houver continuidade, havendo a interrupção do futuro, a história da família poderá não ser escrita.

O repórter Willian Cardoso, muito sensível aos dolorosos fatos e atento ao triste número de mais de 500 mil vítimas deste vírus, trouxe o tema para ser discutido, principalmente, se não estamos vivendo uma inversão de circunstâncias, já que filhos (as) deveriam viver mais que os pais, e não os pais deveriam estar enterrando os filhos.

A impotência diante da morte, causada pelo Coronavírus, reforça ainda mais o medo que se tem dela. Ao vivermos a morte de tantos outros, parte de nós vivencia a morte em vida. Diante dela, o consciente sabe quem perdeu, mas ainda não dimensiona o que ou quanto perdeu, porque não acredita no que aconteceu, talvez seja por isso que nossa sociedade até a pouco tempo a negava, embora o ser humano se constitua um ser-para-morte.

A dor coletiva de tantas famílias chama a atenção para o momento nefasto de nossa história, deixando enorme sequelas. Muitos filhos e filhas partiram, vítimas da covid-19, que não só ceifa vidas, mas planos, projetos, sonhos e futuro. O investimento de tantas famílias no futuro de seus filhos se desmorona ao receber a triste notícia, atrelada ao doloroso momento de não poder render as últimas homenagens.

Esta dor imensurável, de vidas importantes perdidas - pois toda vida importa, toda dor sentida é única - deixarão marcas que constituirão a subjetividade e a realidade de quem fica. Mas, muitos se perguntam como essas pessoas encontram sentido na vida após dolorosos pesares, e ainda, como viabilizarão o vir-a-ser de si mesmo, após e apesar dessa morte. Tais indagações, dificilmente poderiam ser respondidas, se entendermos que mesmo quem perdeu alguém, para este vírus, ainda busca esta resposta. No entanto, há o conforto das lembranças dessas pessoas queridas, gravadas na memória

Temos na memória, a luta para se manter vivos acontecimentos e personagens, sendo assim, há a possibilidade da presença do ausente e a tentativa de diminuir a dor da ausência da presença desta pessoa amada, acarretando o reconhecimento da força simbólica, mesmo a partir do falecimento deste ente querido.

Pois, como é referido no texto atribuído a Adélia Prado, "O que a memória ama, fica eterno". Assim sendo, "quanto mais vivemos mais criamos nossas eternidades", uma vez que a memória é recheada de nossos segredos, segredos da vida vivida ao lado daquele que partiu. A vida emerge na história, na história que se contará daquele que partiu. Desta forma, mantenham as histórias vivas na memória e vivas na história da família.

Meus mais sinceros sentimentos a todas as famílias enlutadas.

*Marcelo Alves dos Santos é doutor em Psicologia Social e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.