Em 30 de março de 2021, a Presidência da República editou a Medida Provisória 1040, que se autodenominava Medida de “modernização do ambiente de negócios do país”. Registre-se, a propósito, como vai se consolidando a estratégia de marketing político de se darem nomes publicitários às iniciativas legais. Quem poderia ser contra o objetivo de modernização do ambiente de negócios? O despropósito de se darem nomes retumbantes a meros projetos de lei talvez tenha tido seu ápice em 2015, com a “Lei do Bem”... Decerto quem votasse contra o bem teria parte com o coisa-ruim!
Pois bem, a tal medida provisória “da modernização” trazia um pot-pourri de temas variados e desconexos. No campo societário, havia algumas propostas pontuais, relacionadas à flexibilização na formação do nome empresarial - dispensando que dele constasse obrigatoriamente a descrição do objeto social e permitindo o uso do CNPJ como como nome empresarial - e de tutela dos minoritários nas companhias, ampliando as competências da assembleia geral, tal como definidas no artigo 122 LSA.
No trâmite da iniciativa houve uma invasão de “jabutis”, as emendas casuísticas e oportunistas encaixadas por grupos de interesse, para tomar carona no trâmite acelerado da MP.
Por essa via sub-reptícia, foram ampliadas as modificações propostas para o direito societário, com a inclusão de normas que alteravam substancialmente o regime jurídico dos nossos principais tipos societários, tais como:
a) A extinção do regime jurídico das EIRELIs, com sua transformação imediata, por força de lei, em sociedades limitadas unipessoais, afetando mais de um milhão de empresas;
b) A alteração do artigo 1053 CC para prever que, nas hipóteses em que a limitada adote supletivamente o regime jurídico da lei das sociedades anônimas, não se apliquem as regras da dissolução parcial dos artigos 1028 e 1030, não sendo possível, destarte, a retirada voluntária e imotivada, e nem tampouco a exclusão.
c) A adoção da possiblidade de previsão estatutária do voto plural na companhia, embora com algumas condicionantes e restrições, rompendo com a secular adesão brasileira ao principio “one man, one vote”, em afronta aos direitos das minorias acionárias que a lei, paradoxalmente, pretende tutelar.
No julgamento da ADI 5127, o STF já afirmou a inconstitucionalidade formal dos “jabutis”. No campo societário, é particularmente grave a realização de reformas substanciais por essa via antidemocrática e apressada.
O direito societário é o eixo da organização institucional de todos os agentes econômicos. Os regimes jurídicos relativos a cada tipo societário afetam a distribuição de poder entre os sócios, seus direitos e obrigações, bem como a relação externa entre a sociedade e aqueles que com ela interajam. Qualquer alteração neles cria profundas tensões em milhões de empresa. A extensão e amplitude dos interesses afetados, a dificuldade de se mensurarem antecipadamente os impactos econômicos da alteração legislativa, e a necessidade de se identificarem as interações sistêmicas entre as normas alteradas e o restante do sistema jurídico, tornam imprudente a tramitação acelerada desse tipo de iniciativa.
Emenda na Câmara dos Deputados veiculou tal proposta, que terminou por ser aprovada pelo plenário, incluindo-se no projeto os seguintes dispositivos:
“Art. 38. As sociedades, independentemente de seu objeto ou do órgão em que se encontram registradas, ficam sujeitas às normas legais e infra legais em vigor aplicáveis às sociedades empresárias, ressalvado o disposto nos §§ 1º, 2º e 3º deste artigo.
§ 1º A equiparação de todas as sociedades as sociedades empresárias, na forma do caput deste artigo, não altera as normas de direito tributário aplicáveis às cooperativas e às sociedades uniprofissionais ou as normas previstas em legislação específica das sociedades cooperativas.
§ 2º As sociedades equiparadas às sociedades empresariais nos termos do caput deste artigo somente poderão requerer a recuperação ou a falência previstas na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e demais normativos correlatos, após 5 (cinco) anos contados da data de entrada em vigor desta Lei.
§ 3º Observado o disposto no § 2º deste artigo, as obrigações constituídas antes da data de entrada em vigor desta Lei não estarão sujeitas aos efeitos da recuperação ou da falência previstas na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e demais normativos correlatos, considerados extra concursais os créditos e as respectivas garantias, para todos os fins.
Art. 39. O Capítulo I do Subtítulo II do Título II do Livro II da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a denominar-se "Das Normas Gerais das Sociedades".
Art. 40. A partir da entrada em vigor desta Lei, fica proibida a constituição de sociedade simples.
Parágrafo único. Será registrada na Junta Comercial a sociedade simples contratada antes da entrada em vigor desta Lei que ainda não tiver sido registrada.
Art. 41. As sociedades simples que se encontram registradas no Registro Civil de Pessoas Jurídicas na entrada em vigor desta Lei podem migrar, a qualquer tempo, por deliberação da maioria societária, para o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.
Esses dispositivos, derrubados no Senado Federal, foram restabelecidos pela Câmara quando do retorno do projeto, mas terminaram por ser vetados pela Presidência da República.
Inspirando-se nos códigos suíço das obrigações e no Código Civil italiano, nosso legislador de 2002 criou a sociedade simples como sucedâneo da sociedade civil. Trata-se de espécie societária, em contraposição à sociedade empresária, e dela se distinguindo pela inexistência de organização de capital e trabalho. Presta-se a sociedade simples àquelas atividades de natureza intelectual em que os sócios prestem diretamente os serviços, em estruturas singelas (donde o nome simples). Para confundir os alunos da matéria, o Código também chamou de sociedade simples um tipo societário que entendeu próprio par a o exercício das atividades não empresariais, embora tenha previsto, no artigo 1083, a possibilidade da sociedade simples (enquanto espécie), adotar outros tipos societários. Fixou-se um regime jurídico detalhado para o tipo sociedade simples, lastreado nas características seculares das sociedades de pessoas: a ilimitação da responsabilidade, a restrição ao ingresso de novos sócios, a instabilidade do vínculo societário, a obrigatoriedade do uso de razão social. Previu-se a sua aplicação subsidiária aos outros tipos societários caracterizados pela pessoalidade, inclusive as cooperativas.
Além das distinções internas à estrutura societária, caracterizava-se a sociedade simples pelo registro diferenciado (no cartório de registro civil das pessoas jurídicas) e pela não sujeição aos regimes de insolvência da Lei 11.101. A jurisprudência igualmente tende a afastar, nessas sociedades, a pretensão á inclusão do goodwill no valor dos haveres na dissolução parcial (nesse sentido, (AC: 10508579720188260100 SP, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 24/02/2021, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial).
Os dispositivos vetados eliminavam, em primeiro lugar, a sociedade simples enquanto espécie, sujeitando todas as sociedades estritamente ao regime da sociedade empresária, inclusive no que toca à insolvência. Na sequência, também extinguiam o tipo sociedade simples, tornando seu regime jurídico rol de regras gerais para as sociedades.
A distinção de regimes jurídicos entre sociedades empresárias e não empresárias tem fundamento econômico, e espelha, no plano societário, a distinção que se faz entre as pessoas físicas exercentes de atividade empresarial e de profissão liberal (distinção, aliás, mantida pela lei). É razoável manter-se regras diferentes se não há organização de capital e trabalho. De outra parte, pode-se defender a ampliação do regime de insolvência, mas se optarmos por dar esse passo, não deveríamos nos limitar a submeter a ele as sociedades simples, podendo incluir qualquer agente econômico, seja associação ou mesmo o consumidor (como ocorre no direito comparado).
Por outro lado, é inconcebível dizer que as normas das sociedades simples podem se transmutar em normas gerais das sociedades, como pretende a proposta vetada. Ora, uma norma geral tem aplicação indistinta e imediata a todos os tipos societários, operando de modo distinto da mera aplicação subsidiária.
Além disso, como ressaltado nas razões de veto, a extinção das sociedades simples imporia a milhões de agentes econômicos o custo e o significativo trabalho de realizar alterações e atualizações em outros registros cadastrais, em um contexto pandêmico.
Em um regime de tipicidade obrigatória, a extinção do tipo societário das sociedades simples limita a liberdade de organização dos agentes econômicos.
No plano tributário, a transformação de todas as sociedades simples em empresárias torna menos claro e seguro a identificação de uma sociedade como uniprofissional, sujeitando-as ao risco de serem autuadas pelos fiscos municipais, caso não se submetam ao regime geral de tributação do ISS. Hoje o registro em cartório e a adoção da forma simples gera a presunção, sob fé pública, da inexistência de organização empresarial.
Por fim, a derrubada dos vetos jogaria o exercício da advocacia sob a forma social num limbo jurídico. Seguirá vigente a norma do artigo 15 do Estatuto da Advocacia (lei 8906, de 1994), que, de modo cogente, determina que a reunião de advogados para o exercício profissional adote a tipo da sociedade simples, igualmente facultando a constituição de Eireli, e impondo o registro na própria OAB. Tal norma seguirá vigente, pois se trata de lei especial, mas sua aplicação será inviabilizada pela extinção da sociedade simples.
A Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) lutou valentemente contra a aprovação, pelo Parlamento, do fim das sociedades simples, e bate-se agora pela manutenção do veto presidencial, dada a insegurança jurídica da mudança proposta, sob o prisma tributário. Uma análise jus comercialista aprofundada da questão reforça a relevância de se preservar a sociedade simples, seja como espécie, seja como tipo societário.
Ruy Pereira Camilo Junior, professor Doutor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre e doutor em direito comercial pela mesma Faculdade. Pós-graduado em análise econômica pela FIPE, com extensão pela Universidade de Grenoble II. Diretor da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo).