O poder invisível se expande no Brasil. Trata-se da força descomunal de máfias e grupos que se entranham nas malhas do poder para navegar nas águas das administrações federal, estadual e municipal. Máfias que acabam de perpetrar o mais escabroso assassinato desses tempos turbulentos, a eliminação do indigenista Bruno e do jornalista inglês Dom Phillips.
A Sólon, o legislador grego, foi perguntado se as leis que outorgara aos atenienses eram as melhores. Respondeu: “Dei-lhes as melhores que eles podiam suportar”. E o caso do Brasil? Os nossos legisladores dirão que as leis até são boas, mas o nosso território é uma terra sem leis.
Generaliza-se a sensação de que o País, cuja população armada se expande nas ondas do apoio e benevolência do mandatário-mor, navega nas ondas da impunidade. Madeireiros, mercadores de drogas, seringueiros, devassadores da floresta amazônica, ladrões do asfalto, milícias que dominam morros e favelas, enfim, sanguessugas e trânsfugas de todas as espécies, se espalham.
Alguns, flagrados com a mão na massa, continuam leves e soltos, a confirmar a tese de que o Brasil é, por excelência, o território da desobediência explícita. Nada mais surpreende. O esculacho chegou a tal ponto que uma facção criminosa passou a participar do sistema de transporte privado na capital paulista. E o escritório desse núcleo está dentro do cárcere. Certa vez, ouviu-se uma assertiva do comandante desse império do crime: ora, parlamentares também roubam.
Infere-se que o poder invisível, confortável com a barbárie que consome o País, não tem mais escrúpulos nem receio de mostrar a cara. Coloca-se no mesmo nível do poder do Estado. Para lapidar a pedra bruta do estado de inação em que vive o país, basta as máfias da violência mobilizarem seus exércitos nas ruas e forças de ocupação nos cárceres. Não é de assustar se parcela significativa da população começar a aplaudir a bandidagem da quadra de baixo contra a turma que faz zoeira no andar de cima. Afinal de contas, a passarela da criminalidade e o desfile de impunidade nas antecâmaras do Poder assumem dimensões grandiosas e formas escandalosas.
Corruptos e facínoras, se condenados, ganham o mesmo status perante a lei. A anomia toma conta do País. Vem de longe. Desde os idos da colônia e do Império, fomos afeitos ao regime de permissividade, apesar da rigidez dos códigos. Tomé de Souza, primeiro governador-geral, chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposição da lei, tirando o poder das capitanias. Um índio que assassinara um colono foi amarrado na boca de um canhão.
Ordenou o tiro para tupinambás e colonos entrarem nos eixos. Mas em 1553 uma borracha foi passada na criminalidade, com exceção dos crimes de heresia, sodomia, traição e moeda falsa. Depois chegaram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram até 1830. Severas, estabeleceram a pena de morte para a maioria das infrações, espantando até Frederico, o Grande, da Prússia que, ao ler Livro das Ordenações, chegou a indagar: “Há ainda gente viva em Portugal?”
O fato é que, hoje, entre tensões e panos quentes, o Brasil semeia a cultura do faz-de-conta na aplicação das leis. Uma historinha ilustra nossa cultura: há quatro tipos de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa, onde tudo é permitido, salvo o que for proibido; a segunda é a alemã, onde tudo é proibido, salvo que for permitido; a terceira é a sociedade que vive sob as ditaduras, onde tudo é proibido, mesmo o que for permitido; e a quarta é a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido. A propósito, os candidatos não estão quebrando a legislação eleitoral, ao promoverem e participarem nesse momento de comícios?
O descalabro se escancara: menos de 5% dos indiciados em inquéritos criminais chegam a cumprir sentença condenatória. De milhares de roubos que ocorrem, por exemplo, na Grande São Paulo, poucos assaltantes são presos na ocasião do delito. Sob esse tecido costurado com os fios da ilegalidade nasce o poder invisível, cancro das democracias contemporâneas.
A esperança se esvai, a fé se enterra, o sonho se apaga no maremoto das amarguras cotidianas.
Os órgãos de investigação e controle até avançam. A Polícia Federal, urge reconhecer, ganha mais qualidade, bastando ver o esforço para a descoberta dos assassinos do Vale do Jaguari. Mas há um longo caminho a percorrer para que o Brasil chegue a um patamar civilizatório de respeito.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato.