Afinal, a política social justifica a irresponsabilidade fiscal? Ou, nos termos que o presidente eleito, Lula da Silva, tenta argumentar: matar a fome é prioridade absoluta. Se o dólar sobe e a Bolsa cai, paciência. Está certo o mercado quando não aceita que o dilema seja posto dessa maneira? Os economistas Armínio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha discordam de Luiz Inácio.
Em carta pública, pedem ao futuro comandante do governo obediência ao regime de responsabilidade social. Os formuladores do Plano Real na década de 90 apoiaram o petista contra Jair Bolsonaro na eleição presidencial. Na carta, lembram que não dá para conviver com tanta pobreza, desigualdade e fome, mas o próximo governo tem que sinalizar aos investidores sobre qual a trajetória de estabilidade das contas públicas. Em suma, não é viável estourar o teto de gastos. Os pobres sofrerão mais.
Lula quer dar uma estocada no mercado. Que reage com as armas de que dispõe, os mecanismos financeiros e a própria imagem do país.
Resumo a polêmica com as palavras de Michael J. Sandel, de Harvard, em “Justiça, O que é fazer a coisa certa”.
“O livre mercado é justo? Existem bens que o dinheiro não pode comprar – ou não deveria poder comprar? Caso existam, que bens são esses e o que há de errado em vendê-los? ... A questão do livre mercado fundamenta-se basicamente em duas afirmações – uma sobre liberdade e a outra sobre bem-estar social. A primeira refere-se à visão libertária dos mercados. ...permitir que as pessoas realizem trocas voluntárias, respeitando a liberdade; a segunda questão é o argumento utilitarista para os mercados...pelo qual quando duas pessoas fazem livremente um acordo, ambas ganham e, se o acordo as favorece sem que ninguém seja prejudicado, ele aumenta a felicidade geral...Céticos do mercado questionam esses argumentos. Afirmam que as escolhas nem sempre são tão livres quanto parecem. E afirmam também que certos bens e práticas sociais são corrompidos ou degradados se implicarem alguma transição com dinheiro”.
Os ânimos parecem apaziguados com a promessa de Lula de que não será irresponsável na gastança da máquina administrativa.
O fato é que os compromissos de campanha precisam ser cumpridos. E um dos mais salientes foi a garantia de um auxílio social de R$ 600, afora mais R$ 150 destinados a crianças de até 6 anos de famílias que receberão o Auxílio Brasil. Como garantir essa dinheirama, estimada em R$ 600 bilhões, por quatro anos? Os líderes discutem as alternativas diante de uma PEC que estoura os gastos no orçamento de 2023.
A aprovação da proposta será fator determinante do sucesso/insucesso do governo. Se as margens forem contempladas com um comprido cobertor social, voltarão a aplaudir Lula sob as boas recordações do primeiro mandato, iniciado em 2003. Se houver empecilho para a aplicação do Bolsa Família, como voltará a ser chamado o programa assistencial, o presidente eleito não será aprovado no teste dos 100 dias.
Mãos à obra. Os presidentes – o atual e o futuro – recuperam-se de problemas de saúde, um, tratando erisipela, outro, uma inflamação nas cordas vocais. Um, deprimido, outro eufórico. Um, sem apetite para fechar as últimas semanas de mandato, outro, ansioso para iniciar as primeiras semanas de seu terceiro mandato. Um, procurando tatear os caminhos do amanhã, na tentativa de achar uma montaria para iniciar a trajetória de oposicionista, outro, preparando-se para pilotar o transatlântico que já conhece.
Jair Bolsonaro possui tino e porte para ser líder de oposição? O perfil para vestir esse figurino requer visão do todo, capacidade de liderar grupos e equipes, arrumar discurso consistente, exercer com mestria, sem atos extravagantes, a missão de líder. Luiz Inácio, por sua vez, que sempre se deu bem em um palanque, terá de redecorar o manto. Precisaria atenuar a verve combativa, abrir os flancos da flexibilidade política, escolher hábeis negociadores no Congresso e cumprir a agenda de diálogo com a sociedade civil, calorosa ideia do candidato de uma frente ampla.
Destacando o fato – frente ampla –, Lula terá de se desdobrar para conter o ímpeto dos quadros petistas, que consideram os feitos vitoriosos do candidato como ganhos seus, dos grupos encastelados na sigla. Que “um governo além do PT” se torne mandamento na bíblia petista. Se isso não ocorrer, o presidente enfrentará resistências que poderão prejudicar seus programas.
Sobre a cabeça dos vitoriosos, a inexorável sentença que funciona como alerta: metade do país rejeita Lula, o PT e seu ideário. Por mais que o lulismo seja, hoje, um partido ancorado no liberalismo e nos preceitos da social-democracia, ainda é contestado. Não queiram os perdedores enxergar nele o fantasma do comunismo. As transformações na geopolítica e no arrefecimento doutrinário elegem o pragmatismo como a principal luz a iluminar a escuridão.
Novos polos de poder se multiplicam no seio social. O eleitorado está cansado de velhas querelas. Os discursos estão rotos. Lembro Zaratustra, o profeta de Nietsche, a quem sempre recorro: “novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga. Não quer mais o meu espírito caminhar com solas gastas”.
*Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato.