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Opinião

Foto: Divulgação

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Não faz muito tempo, ouvíamos os brados do governante dispensado de sua jornada: “sou eu que mando, eu sou a Constituição, acabou, porra”. Nos últimos tempos, temos ouvido, não com tanta força nos pulmões, mas com profundo fervor, o desabafo do atual mandatário: “fui eu quem ganhou as eleições; sou eu quem decido...Obviamente, o ministério (da economia) tem autonomia, tem um monte de coisa, mas quem ganhou as eleições fui eu. Vou ter inserção nas decisões políticas e econômicas deste país”. Cada governante com seu direito de bater o pênalti.

Fernando Haddad convenceu Lula a retomar o imposto sobre os combustíveis. Venceu o primeiro round da batalha contra Gleisi Hofmann, presidente do PT, que se diz contrária à taxação dos combustíveis, sob o argumento de que tal medida apenaria o consumidor e descumpriria meta de campanha. Lula deu amparo a Haddad. A comprovar que dará o tom na orquestra econômica que ameaça desafinar nesse início de governo. Portanto, o pênalti foi cobrado pelo centroavante Luiz Inácio. Ocorre que o jogo continuará nesse e em outros campos. 

É o caso da frente rural. Três fazendas produtivas da companhia Suzano foram invadidas por quase 2 mil integrantes do Movimento Sem Terra (MST), entidade que não esperou os 100 dias de governo Lula para mostrar sua disposição de invadir espaços no campo e, desse modo, desafiar os governantes. O Movimento cobra urgente preenchimento de cargos no Incra, alertando, de antemão, que só aceitará no comando daquele Instituto pessoa de sua confiança. O imbróglio está sendo montado.

Se não for nomeado o dirigente do agrado dos invasores, eles continuarão sua ação de ocupação, fazendo ouvidos moucos ao governo. Uma típica estratégia de barganha. Confusão se delineia nos horizontes, a sinalizar que o governo Lula 3 pode antecipar aquilo que, em administração, se chama de “ponto de quebra” (break even point), o rompimento do equilíbrio, o fechamento do diálogo, a ruptura.

Ora, é muito cedo para se ouvir barulho nas margens da sociedade. Que possa haver uma Torre de Babel no meio da lagoa, aonde políticos vão e vêm com suas demandas, pressões e contrapressões, ainda é admissível. Nas margens, movimentos bruscos – invasões, conglomerações, ataques – são ferramentas de desestabilização, tudo que um novo governo tem de evitar. Mais ainda, quando se trata de uma administração formalmente comprometida com os anseios sociais, com as minorias étnicas e de gênero, como pode se enxergar no extenso rol de ministérios e órgãos voltados para representar o pensamento e demandas de minorias e comunidades carentes.

A interpretação que cabe, no momento, é sobre as alternativas que se apresentam ao governo Lula 3: defender e adotar uma política responsável de gastos, sem esburacar os silos do Tesouro Nacional, ou praticar os ritos de algumas tribos que se orientam pelo lema: “saiam da frente, vamos arrebentar com tudo”. Mais ainda: como a administração deve tratar os eixos sociais que, historicamente, têm movimentado a roda da esquerda e são considerados aliados do ideário petista? A expressão de Lula, nos últimos tempos, parece resgatar o perfil do passado, quando emergia o líder dos trabalhadores, com sua voz rouca, a castigar as elites. Esta semana mesmo, o presidente atribuiu a carência das margens famintas a uma parte da população que “está comendo mais do que deveria”.

É um exercício retórico, que tem apenas o condão de aumentar a radicalização. Insistir na luta de pobres contra ricos, uns contra outros, nós e eles, é dar murro em parede. Mesmo sem nuvens no horizonte prenunciando volta aos tempos de chumbo, não podemos desprezar o fato de que a direita ganha força, aqui e no próprio continente latino-americano. A esperança é a de que o meio da pirâmide se alargue, com a expansão de classes médias. E de que a democracia brilhe vitoriosa hoje e amanhã. E contenha o furor das extremidades do arco ideológico. Os sistemas democráticos carecem de classes médias fortes.

Para enfrentar injustiças e desvarios, a força da lei. Não é que três vinícolas do Rio Grande do Sul foram flagrados, cometendo crimes, usando métodos do passado escravagistas? Nordestinos (baianos) eram selvagemente castigados. Como é possível essa barbaridade ocorrer em plena era da sociedade do conhecimento? Como é possível que um desalmado vereador defenda isso?

Em anos idos, Geraldo Vandré já fazia a comparação entre a exploração das classes sociais, as boiadas tocadas pelos boiadeiros, a maneira de tratar gado e gente. Com Theo De Barros, compôs um dos mais belos hinos da resistência contra a ditadura: “ ...as visões se clareando... até que um dia acordei; Então não pude seguir/ Valente em lugar tenente/ O dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente/ Se você não concorda/ Não posso me desculpar/ Não canto pra engana/ Vou pegar minha viola/ Vou deixar você de lado/ Vou cantar noutro lugar”.

Urge condenar o tratamento desumano de trabalhadores escravizados.

*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.