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Cultura

Foto: Arquivo Pessoal

Quem viu a única mulher empunhando a bandeira do divino no Festival Cultural de Silvanópolis, região central do Tocantins, na última sexta-feira (16), até podia não conhecer a sua história, mas sabia que uma grande força a levara até ali. Única a participar do evento, na categoria vênia, Miguelanes Crisóstomo, mulher negra quilombola, de 35 anos, mais conhecida como Mita, girava no ar a bandeira vermelha, ornada de fitas, com a paixão, o compromisso e o respeito que herdou do pai.   

O momento expressado com tanta beleza e reverência, além de quebrar barreiras num campo cultural pouco acessível às mulheres, tem um significado ainda maior.  Há cinco meses, um trágico acidente entre Natividade e Almas, na TO-280, tirou a vida do pai Joaquim Crisóstomo, 65, e da mãe Antônia Crisóstomo, 58, e de outras 10 pessoas, interrompendo o compromisso que pai e filha haviam firmado um ano antes, de estarem juntos neste mesmo festival.

Mita conta que não foi fácil tomar a decisão de participar do evento, mas a certeza do quanto isso orgulharia o pai a fez enfrentar a tristeza e treinar por dias, a fim de competir com a técnica e a entrega que a manifestação exige. Apesar da rotina já bastante comprometida - é mãe de cinco filhos, presidente da Associação Quilombola Poço Dantas e servidora pública municipal -, ela conta que sentiu que deveria viver essa experiência. 

 “Tudo que eu sei aprendi vendo ele fazer. Ele ia para a folia e eu ficava observando. O coração dói porque eu tinha o sonho de girar 40 dias junto com ele, de participar do festival junto com ele, eu na vênia e ele na caixa, mas Deus não deu essa oportunidade”, conta ela, ao acrescentar que toda atividade ligada à manifestação lembra o pai. “Eu vou sempre me lembrar que ao escolher estar na folia estarei fazendo o que ele faria. Ele era muito devoto do divino espírito santo e servia com muita maestria, e essa emoção fica”, conta ela.

Herança

Mita carrega uma herança ancestral, que seu pai fazia questão de repassar aos mais jovens, como ela. Era comum vê-los juntos nas manifestações do divino, e é desse modo que ela quer continuar a sua jornada, levando adiante o que aprendeu, passando a herança aos próprios filhos, e aos outros filhos da comunidade quilombola, e também do município. 

Ano passado, por exemplo, atuou como despachante de uma das folias locais. Já este ano, devido ao acidente, não pôde se envolver diretamente, mas colaborou com as quatro folias que giram no município e nos festejos de Nossa Senhora do Rosário e do Divino Espírito Santo.

Legado

Foto: Divulgação

O legado cultural de Joaquim, para muitos o conhecido tio Quinca, quilombola do Poço Dantas, explica a entrega da filha com a manifestação do divino espírito santo. A herança dos troncos velhos da comunidade, a qual foi aprimorando ao longo do tempo, tornou-o respeitado folião, que tocava variados instrumentos como a caixa, o pandeiro e a viola; que desempenhava diversas funções nas folias, e que era capaz de puxar inúmeras rodas.

Além da família, seu conhecimento se estendeu entre os jovens da comunidade e pela região a fora. São muitos os que carregam orgulhosos o aprendizado que herdaram dele. É o caso do folião, cantor e compositor, Cassiano Ferreira Lisboa Neto, de 38 anos, de Almas. Ele conta que tinha apenas 15 anos quando girou pela primeira vez, sem nenhum conhecimento, por 40 dias, levado por Quinca.

“O conhecimento que eu tenho, o jeito de fazer a melodia, os instrumentos, foi tudo graças a ele, que me apoiou e me guiou. Até no modo de agir eu devo a ele, porque na folia, quem não tem bom comportamento a carreira é curta”, relata ele, que hoje já soma 23 anos como folião e trabalha para construir um legado ainda maior. No sábado (17), por exemplo, girava na folia do divino do Povoado Missão, em Dianópolis, reafirmando o compromisso e a devoção iniciada com o tio Quinca, como o chamava.

Outro folião que carrega a herança cultural de Joaquim, é Darley de Paiva Moreira, de 39 anos, da vizinha Natividade. Ele conta que também teve seu primeiro giro de folia com Joaquim. “Quando tinha 13 anos de idade o tio Joaquim foi com a folia de Almas, que gira em Natividade. Eu pedi pra girar e ele confiou em mim, e me deu a bandeira”, conta ele, saudoso e agradecido.

Os artistas Miguelanes, Cassiano e Darley são algumas das sementes deixadas pelo saudoso folião, que além do talento cultural era ser humano de grande honra, zeloso tronco do seu povo. É por isso que uma das memórias pela qual é reverenciado é a admiração e o respeito que devotava à esposa, Antônia, mulher preta quilombola, importante líder da comunidade e grande companheira de vida.

Essa postura, vinda de um sertanejo de pouco estudo formal, numa sociedade que ainda relega às mulheres pretas uma condição de invisibilidade, é uma prova da sua grandeza que também não se apagará.