A Bacia Tocantins-Araguaia abriga uma biodiversidade espetacular de espécies de peixes, muitas delas endêmicas, ou seja, são encontradas somente por aqui. O rio Tocantins é o segundo maior curso d’água. Para se ter uma ideia da sua dimensão, ele nasce em Goiás, atravessa o Tocantins e o Maranhão e deságua no estado do Pará.
Na Universidade Federal do Tocantins (UFT), o professor e pesquisador Fernando Mayer Pelicice estuda os ecossistemas aquáticos há duas décadas. Suas pesquisas concentram-se nos peixes de água doce e trazem importantes reflexões sobre a importância deles para a sociedade e a necessidade de preservação dos nossos ambientes aquáticos.
Na natureza tudo está conectado
Um grupo de pesquisadores coordenados pelo professor Fernando Pelicice reuniu-se para compreender a importância dos peixes para a sociedade. Esse estudo culminou numa extensa lista de serviços ecossistêmicos prestados pelas espécies da região Neotropical — área que se estende do México à Argentina e abriga a maior biodiversidade de peixes de água doce do mundo.
''Não havia uma compilação dessas, até então. Há alguns serviços ambientais que são inquestionáveis, bem conhecidos e bem estudados, que são aqueles relacionados à pesca e estão ligados à geração de renda, oportunidades e alimento. Na literatura científica, a gente encontra outros serviços também, é uma lista bem longa que inclui a dispersão de sementes, na decomposição e ciclagem de nutrientes, no controle biológico de algas e insetos e para o funcionamento do ecossistema'', explica Pelicice
''Eles são importantes para o funcionamento do ecossistema e, sendo importantes para o ecossistema, eles impactam de alguma forma na humanidade. Eles têm um papel muito relevante e subestimado que é o cultural. Se a gente vai para algumas comunidades tradicionais, os peixes participam dessas culturas na forma de deuses, de mitos e de conhecimentos tradicionais'', afirma o pesquisador.
Apesar de muito ter sido descoberto com essa pesquisa sobre a importância dos peixes de água doce para a humanidade, há um universo ainda de coisas que ainda estão por serem descobertas. Afinal, o conhecimento não se esgota.
Dentro dos estudos sobre os peixes de água doce, o professor Fernando tem um projeto dedicado exclusivamente às populações de tucunaré na região de Lajeado (TO). O projeto foi iniciado em 2009 e segue ativo até hoje, com o envolvimento dos estudantes e financiado pela bolsa de produtividade em pesquisa do docente concedida pelo CNPq.
''Nesse projeto, nós mantemos coletas frequentes de tucunarés, amarelo e azul, entre Porto Nacional e Brejinho de Nazaré. Coletamos os animais para investigar vários aspectos de biologia deles. Os básicos estão relacionados ao comportamento deles: alimentação, reprodução, distribuição, crescimento, tamanho populacional e interação entre eles'', comenta o professor.
''Esse projeto é relevante porque está gerando uma base de dados muito ampla e é um dos poucos projetos no Brasil a investigar, em longo prazo e com detalhamento, tucunarés nativos, porque boa parte dos estudos são com tucunarés invasores, introduzidos. Então, estamos gerando uma riqueza de dados muito importante'', ressalta.
Além do ineditismo científico, que já rendeu artigos publicados como Coexistence of endemic peacock basses (Cichla) in a Neotropical reservoir (Cichlidae: Cichliformes), a participação dos alunos é outro destaque.
''Desde 2010, o projeto tem dado suporte para muitas monografias de graduação das Ciências Biológicas e muitas dissertações de mestrado do curso de biodiversidade aqui de Porto Nacional. São quase 15 anos de envolvimento com alunos fazendo trabalho de campo, trabalho de laboratório. Então, ele tem tido uma função bem importante na formação do pessoal''.
O professor Fernando conversou mais sobre os resultados de suas pesquisas sobre os tucunarés nativos do Tocantins em um dos episódios do programa Canguçu Ciência, transmitido semanalmente pela UFT FM e disponível no Spotify. Se você ficou curioso para saber mais sobre a espécie, basta dar uma conferida na plataforma — Canguçu Ciência #15 - Tucunaré.
A tradição que se enfraquece
Um dos estudos mais recentes relacionados ao impacto do represamento dos rios na vida aquática realizados por Pelicice diz respeito às consequências que as barragens das hidrelétricas trazem para as comunidades de pescadores.
Durante três meses, foram feitas pesquisas de campo e entrevistas com pescadores de Porto Nacional para entender como a construção da Usina Hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães — localizada entre as cidades de Miracema e Lajeado — alterou o seu modo de vida. Os resultados estão no artigo de 2023 ''The effects of river impoundment on artisanal fishers in the Middle Tocantins River, Brazil'' (Os efeitos do represamento fluvial sobre pescadores artesanais no Médio Rio Tocantins, em português), produzido em conjunto com Marco Aurélio Santos, egresso do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade, Ecologia e Conservação (PPGBec/UFT).
''A pesca mudou muito, isso a gente pode ver aqui no estado do Tocantins e traçar uma história de como a pesca era antes das construções das barragens e do desmatamento. Ela mudou brutalmente em termos de qualidade e quantidade. As espécies que os pescadores gostavam de pescar antigamente não existem mais, não se pega mais em determinados trechos do rio, nessas partes mais impactadas'', lembra o professor.
Na pesquisa, foi identificado que os pescadores têm consciência das transformações causadas pela barragem da hidrelétrica e, com o passar do tempo, grande parte deles está insatisfeito com a profissão, já que as condições de trabalho pioraram. Além disso, nota-se o enfraquecimento do aspecto tradicional dessa ocupação, visto que os membros mais jovens das famílias não seguem mais os passos dos pais e avós.
''Ademais, o represamento de um rio traz outros inconvenientes para os pescadores artesanais, como a perda de locais de lazer (praias sazonais), o crescimento excessivo de plantas aquáticas que prejudicam a navegação, a presença de troncos e tocos de árvores, a proliferação de animais incômodos (piranhas, arraias, mosquitos), florescimento de algas, entre outros fenômenos'', enumeram os autores no artigo.
O pacote de impactos humanos nos rios
No artigo ''A political tsunami hits Amazon conservation'' (Um tsunami político atinge a conservação da Amazônia, em português), publicado em 2021 na revista Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems, Pelicice levanta o histórico de políticas direcionadas à região amazônica e discute sobre o poder que políticas públicas têm de promover a conservação da natureza e incentivar a degradação ambiental se mal direcionadas.
''O Brasil buscou integrar a Amazônia economicamente ao restante do país através do estabelecimento de grandes infraestruturas, como estradas e hidrelétricas, e do incentivo ao agronegócio, cuja produção se dedica a exportação de commodities para os mercados internacionais''.
A realidade relembrada no início do artigo mudou quando pesquisadores, organizações não-governamentais, a sociedade civil e o Estado uniram esforços para colocar em prática uma série de iniciativas para preservar a Amazônia que tornaram o Brasil uma referência mundial em conservação de Florestas Tropicais, ainda que a proteção aos ambientes aquáticos não tivessem a mesma força.
No estudo, Pelicice destaca que os ecossistemas aquáticos sofriam com poluição, exploração dos recursos e mudanças nos fluxos dos corpos d'água e de sedimentos, que não eram necessariamente o foco das políticas ambientais. Embora a legislação brasileira considere a água como um recurso finito, na prática as determinações não tem em vista a complexidade dos sistemas aquáticos.
''Com relação aos ecossistemas aquáticos, a situação é muito dramática. Historicamente, a humanidade precisou desse ambiente e nós conduzimos uma série de intervenções com impactos negativos sobre a biodiversidade aquática. Então os peixes têm sido muito impactados com as nossas ações a ponto de desaparecerem. Têm lugares onde os peixes simplesmente não existem mais''.
Dentre as intervenções negativas, o professor cita o desmatamento da zona ripária, poluição, contaminação dos rios, a pesca excessiva, o assoreamento e a construção de hidrelétricas e barragens de diferentes portes.
''Eu acho importante destacar o estado ambiental da Bacia Tocantins-Araguaia, principalmente do rio Tocantins. O estado de degradação em virtude da expansão das atividades humanas é dramático. O rio Tocantins se encontra barrado em toda a sua extensão, existem barragens desde a cabeceira até quase a foz. Uma barragem muda por completo o funcionamento do ecossistema, imagine várias. Isso é somado com a progressão do agronegócio que tem removido a cobertura vegetal'', complementa.
Ciência é trabalho coletivo
O professor Fernando Pelicice está entre os pesquisadores mais influentes do mundo, segundo levantamento apresentado pela Public Library of Science (PLOS), projeto sem fins lucrativos que trabalha com a publicação e divulgação científica.
A lista é composta por mais de 160 mil nomes de pesquisadores de diversos países do mundo, sendo 853 deles brasileiros de diferentes instituições nacionais. Dentro desse rol, o professor Fernando é o único a representar o estado do Tocantins e um dos três ligados a universidades da região Norte.
Biólogo com formação em ecologia de ambientes aquáticos, o pesquisador aparece como um dos 24 mais prestigiados do Brasil e um dos mais relevantes do mundo na área de Ecologia.
Na entrevista do pesquisador em 2020 ao Portal da UFT — que você pode conferir na íntegra aqui —, Pelicice lembra que o reconhecimento recebido é resultado também do suporte das equipes e instituições que participam e incentivam seus projetos, já que a pesquisa científica necessita de toda uma estrutura na qual se apoiar.
De acordo com os dados mais recentes dos Indicadores Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação, elaborado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o Governo Federal investiu cerca de 40 bilhões de reais em ciência em 2020, representando um aumento nos recursos destinados à área se comparado aos três anos anteriores. Embora o valor seja expressivo, ainda é menor se comparado com o montante gasto entre 2010 e 2016.
Tendo em vista o cenário tocantinense, o mesmo relatório do MCTI aponta que o Governo Estadual despendeu quase 70 milhões em 2020 para o setor de ciência e tecnologia, o que coloca o estado entre os cinco que menos dedicam recursos para a área. Ainda assim, é preciso destacar que, desde os anos 2000, o Tocantins amplia o investimento em pesquisa.
''As pesquisas são a base para se entender esses assuntos complexos e elas devem ser a base para amparar a gestão dos recursos naturais, e o que a gente espera [como pesquisadores] é que os políticos sejam sérios o suficiente para usar o conhecimento científico nessa gestão'', conclui Pelicice, pontuando a importância das pesquisas para a sociedade. (UFT)