Há uma cobertura intensa da mídia, em diferentes canais, para um assunto que envolve o universo das celebridades. É tema que vai além, tratando do Direito e de questões jurídicas relacionadas a família e patrimônio. Trata-se do imbróglio envolvendo a atriz Larissa Manoela e seus pais – e o “divórcio” entre essas partes – e vale observar o assunto para além da questão de “fofoca”, tão presente em coberturas do tipo.
A imprensa vem noticiando longamente o rompimento da relação da atriz com seus pais, com direito a entrevistas longas em canais de televisão de parte a parte, falas de advogados e especulações em todo tipo de desdobramento de uma história que traz caráter inusitado e, por isso, é fato jornalístico incontestável.
Ainda com a coluna de domingo em vista e seguindo sua linha de raciocínio, visando contribuir com uma ideia de trazer elementos jurídicos a este debate, gostaria de fazer algumas reflexões. A ressalva é não ter acesso a minúcias da discussão sobre o rompimento de Larissa e seus pais, que se deu supostamente por má-gestão de bens, valores por ela recebidos desde os seis anos de idade de precoce carreira de atriz, sempre de muito sucesso.
O principal aspecto é: qual é a extensão da responsabilidade de pais em relação ao patrimônio dos filhos? A relação entre pais e filhos é regida pelo instituto do “poder familiar”, que substituiu o antigo pátrio poder(incluindo a ideia de igualdade de posições entre genitores) e que se refere a direitos, responsabilidades e obrigações de pais em relação aos filhos menores de 18 anos. O poder familiar é um elo entre pais e filhos tido por irrenunciável, intransferível por iniciativa de seus titulares, inalienável e imprescritível. Nas palavras de Silvio Savio Venosa, trata-se de uma função, um múnus público, um encargo, ou seja, é uma autoridade fundada no interesse do outro.
Argumento reforçado pelo artigo 227 da Constituição Federal, que deixa claro que é dever da família, entre outros, colocar crianças e adolescentes “a salvo de toda a forma de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O vínculo entre pais e filhos envolve diversos aspectos, como sustento, custódia, educação e formação, tomada de decisões médicas, formação ética e moral, proteção e segurança. Mas também traz expresso o dever de administração do patrimônio.
No que se refere ao patrimônio dos filhos, cabe aos pais garantir a administração dos bens de forma apropriada, tomando decisões financeiras no benefício destes e garantindo que os bens sejam mantidos em boas condições. Os pais devem também assegurar o uso responsável, ou seja, não podem os genitores usar o patrimônio para benefício próprio ou de terceiros, sendo certo que o uso dos bens deve ser sempre realizado em favor de crianças ou adolescentes. Inclusive, de acordo com o artigo 1637, do Código Civil, em caso de abuso de autoridade, falta no cumprimento de seus deveres ou prática de atos que gerem a ruína dos bens dos filhos, poderá o Poder Judiciário, a pedido do Ministério Público ou de qualquer parente, suspender o poder familiar.
Mas há uma questão no ordenamento jurídico brasileiro que gera uma insegurança e uma grande desproteção às crianças e adolescentes. É que, de acordo com o nosso Código Civil, artigo 974, incorporado pela Lei 12.399/2011, o menor de 16 anos pode ser sócio de Sociedade Limitada, desde que:representado por ambos os genitores, o capital social esteja totalmente integralizado e a criança ou adolescente não figure como administrador da Sociedade.
Ocorre que, ainda que não possa figurar como administrador, há o risco de o filho vir a responder no futuro com seus bens por dívidas contraídas pela empresa. Ou, se a criança ou adolescente, possuir patrimônio (como é o caso de Larissa Manoela), os pais poderão livremente gerir os bens por meio da Sociedade Limitada sem cumprir as regras protetivas de nossa legislação, tal como descrito acima.
Durante muito tempo prevaleceu na legislação, o entendimento de que o menor de 18 anos não poderia integrar o capital social de Sociedade Limitada, devido a restrição constante do artigo 308 do Código Comercial.Mas, essa questão foi definida pelo Supremo Tribunal Federal, que, em acórdão datado do longínquo ano de 1976, estabeleceu um marco na definição pela legalidade da inclusão de sócio menor em Sociedade Limitada.
O entendimento que aliás, se mantém até os dias atuais, é o de que “se o menor está sob o regime de pátrio poder e sua contribuição é em dinheiro ou bens móveis, a afirmativa se impõe (a de que este pode vir a integrar a Sociedade Limitada)”.
Ora, com respaldo nesta decisão, aliás lembrada por diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça, admite-se o ingresso de crianças e adolescentes em Sociedades, apenas com a atualização de que se impõe atualmente a assinatura de pai e mãe (ao invés do pai, exclusivamente) para os atos de registro da Sociedade na representação de filhos menores de 16 anos.
Por tudo isso, são muito bem-vindos os projetos de lei que buscam regulamentar e proteger as crianças e adolescentes que passarem a participar de Sociedades por decisão unilateral dos pais, especialmente em tempos de celebridades que se consolidam ainda na juventude e que se desenvolvem fartamente no universo de redes sociais e no mundo do entretenimento.
Longe do controle judicial e dos olhos do Ministério Público genitores realizam livremente a gestão dos bens de menores, fazem uso de seus nomes e contraem dívidas que poderão onerá-los por muitos anos, tudo em um mundo em que os contratos são realizados muito rapidamente, as transferências financeiras se resolvem em um clique e o nome e a imagem são nossos reais e efetivos patrimônios.
*Gabriella Fregni é advogada, sócia do escritório Fregni – Advogados Associados, Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e Doutora em Direito do Estado pela USP.