O país está de um lado e o Governo, de outro. As derrotas sequenciais do Governo no Congresso Nacional e as falas desastradas do presidente Lula mostram que a gestão governamental está apartada da moldura política. E, por consequência, da esfera social. Até parece que o governo faz ouvidos moucos ao clamor social. Insensibilidade ou ignorância? Lula tenta se agarrar ao velho discurso de que importa, sobretudo, aumentar a gastança, abrir os cofres e mandar para a cesta de lixo o manual de controle fiscal. Se deu certo, ontem, deve pensar, por que não dará certo hoje? O dólar dispara, a bolsa de valores despenca, a teia de apoios ao governo no Congresso se esgarça. O Brasil político anda de cadeira de rodas, o Brasil econômico navega no fio da navalha e o Brasil social enfrenta as últimas ondas de esperança.
Fernando Haddad, que tinha tanto crédito junto ao chamado mercado, entra em processo de descrédito. No Rio Grande do Sul devastado, o ministro Paulo Pimenta tenta justificar seu ministério da reconstrução, mas patina na lama das cidades gaúchas. O ministro das comunicações foi indiciado pela PF, mas continua firme na Pasta. Um mistério. A frente dura do governo não mostra competência nem unidade. A impressão é a de que falta um gestor capaz de reger os outros e a fazer com que os bumbos da orquestra toquem em harmonia com as cordas e os metais. A orquestra do Lula III está desafinada.
Não se consegue fazer a lição de casa. Os problemas nacionais estão esquecidos para dar lugar ao jogo da pressão e da contrapressão. Um jogo de conveniências. Diz o ditado: “há quatro espécies de homens. O que sabe e não sabe que sabe - é tolo, evita-o; o que não sabe e sabe que não sabe - é simples, ensina-o; o que sabe e não sabe que sabe - ele dorme. O que sabe e sabe que sabe - é sábio, segue-o”. Ora, Luiz Inácio é perito na arte de jogar bem. Mas parece ignorar a realidade política. E a não ter motivação para tocar o dia a dia do governo. Mostra cansaço.
E por que tanta inércia? Porque o Governo está descolado do Brasil real, distante das aflições do cotidiano. O mundo mudou e o mandatário cavalga o cavalo velho. O manto costurado pela equipe econômica de Fernando Haddad tenta dar equilíbrio às contas, mas acaba ajustado ao compasso do dono da flauta. São desafios rotineiros os imensos guetos de miséria, populações marginalizadas, um substrato que insere o país nos primeiros lugares do campeonato mundial de desigualdades. Há um Brasil virtual, de grandes negócios, de atrativos para investimentos, que entram e saem como nuvens voláteis sobre nossas cabeças, e um Brasil real. Os dois se encontram nas paralelas que se cruzam ali na nossa frente, não no infinito. Basta enxergar a estética da depauperação, com populações assoladas por chuvas ou secas. O povo continua a não ver a cor da fortuna, não sente o gosto do progresso, não consegue tocar o solo pátrio.
O Brasil verdadeiro não é o do Real da estabilidade econômica, porém o das ruas congestionadas, da violência que mata, do universo do medo e da insegurança crescente. Não é o da projeção feita nos ambientes tecnocráticos do Planalto central. É o do sonho de melhoria de vida. No país de entes federativos devastados, multidões laboriosas comprimem-se nos meios de transporte, nas filas dos hospitais, na porta das fábricas. A classe média se aflige ante a escassez de seu bolso. A Nação real é a que se vê surpreendida com o surto de doenças do princípio do século e, ainda, sujeito a pandemias. Sob suas estruturas operativas, muitas corrompidas, desenvolvem-se serviços que o tão propalado projeto de modernização não consegue tornar eficientes. No universo virtual, a decência, a moral, a dignidade continuam como bandeiras dos discursos governamentais. O Brasil do faz-de-contas procura esconder o país das negociatas que corroem o patrimônio público, juntando nos porões da administração políticos inescrupulosos, burocratas corrompidos e empresários desonestos.
Os bicos poderosos dos tucanos foram quebrados há tempos. As asas voadoras do PT procuram espaços mais altos para implantar um projeto hegemônico de poder. Um projeto que abriga a ideia de reeleger Lula em 2026, governadores de Estados importantes e prefeitos em grandes cidades. A tática é a de promover coligações com todos os partidos e arrumar formas e recursos para assegurar a eficácia do empreendimento, que passa pela dinheirama na campanha eleitoral deste ano. Está além da linha do horizonte o país da falta de planejamento, da ausência de prioridades, da gastança, da retórica ficcional. O Brasil virtual promove uma grande conspiração contra o Brasil real.
*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.