Murilo Bahia Brandão Vilela: partiu o homem, mas a voz imortalizada fica no meio literário tocantinense e entre as gentes ribeirinhas do Rio Tocantins, de Tocantinópolis a Carolina, e alhures no sertão. O alagoano de Viçosa Murilo, membro fundador da Acalanto (Academia de Letras de Araguaina e Norte Tocantinense) e ocupante da cadeira 4, era daqueles homens — cujos últimos espécimes se extinguiram em meados do século XX — que muitos epítetos qualificavam sem contudo abranger toda a sua importância: médico, ambientalista sertanejo, jardineiro amante das flores, prosador, poeta e artista multiforme que dava nova significação a pedras e paus que a natureza descartava.
Nascido em 1935 no Engenho Mata Verde, ele partiu aos 76 anos, na manhã de 19 de maio, à bela vista do Rio Tocantins no aconchego do lar. A seu lado estavam a esposa Conceição, a família, os amigos e os pássaros em liberdade no vasto pomar da casa em Tocantinópolis, que nem bem o dia acordava lhe vinham render tributo. A vida reservou-lhe no fim, como grato reconhecimento, a mesma carinhosa e responsável assistência caseira que dispensava aos pacientes como médico no início da década de 1960, velando-os no leito em Carolina (vide crônica).
Autor de Taipoca (Crônicas - 2006), ele diz sem ressaibos saudosistas: “Faz 55 anos que os caminhos de meu mundo começaram a me afastar do berço de minha nascença. Jamais, porém, pesaram-me aos ombros, ou à minha consciência, os imensos fardos das saudades, das lembranças e dos amores que sempre estiveram comigo em todos os dias de minhas andanças. Pais, irmãos, parentes, amigos, Mata Verde e Viçosa, constituintes maiores de minha formação física e sentimental, haverão de ser, enquanto vida viver, a pulsação perene de minha distante juventude, tentando manter o equilíbrio de meus passos que, com certeza, já cambaleiam ao peso de meus 71 anos de existência” (p. 17).
O presidente da Acalanto, Edson Gallo, dimensiona a sua perda para nossa literatura: “O talento demonstrado como memorialista e como contador de histórias é incontestável. Premiado em vários concursos literários no Tocantins e no Brasil, Dr. Murilo é uma perda lamentável para a cultura tocantinense”.
Um médico como queria Hipócrates
O último trabalho literário de Murilo Vilela foi o prefácio de meu romance Memórias de Petelico (impresso e com lançamento previsto para o segundo semestre), onde ele diz: “Enquanto jjLeandro abria os olhos para o mundo, eu, recém-saído da faculdade, também abria os olhos para o meu primeiro mundo como profissional da medicina. Falo da aurora dos anos sessenta. Os dez anos que se passaram, naquela época, estão inseridos nas cinco décadas que completarei em poucos dias, marcando presença nas duas margens deste fabuloso rio Tocantins”.
Também do livro, reproduzo capítulo sobre sua presença em Carolina (MA), onde rápido granjeou fama de médico competente e caridoso, que as águas do Tocantins bem souberam, celeremente, espalhar a montante e a jusante.
Murilo Bahia Brandão Vilela (Capítulo de Memórias de Petelico – jjLeandro – 2011)
“Um homem com o peso da velha oligarquia nordestina sobre os ombros. Membro de uma daquelas famílias oriundas de Portugal para afirmar o domínio da coroa em terras brasileiras ele só queria mesmo ser como o povo daqui. Seus antepassados por muito tempo além do doce açúcar de engenho produziram também o fel da dominação colonial. Mas à sua época essas peias retrógradas não mais puderam contê-lo. Jovem alagoano de Viçosa formara-se médico em Recife numa das melhores faculdades de medicina do Nordeste. E não demorou a ser tocado pela viração do Engenho Mata Verde para o interior desconhecido do país, mesmo vento que desembarcou os colonizadores nessa nação exótica e embalaria décadas depois em seu tio, senador Teotônio Vilela, um cavaleiro andante da democracia brasileira, o espírito redemocratizante na política.
Ele chegou em Carolina nem bem iniciava a década de 1960. Ficaria a meio caminho do destino que desejava — o Amazonas —, pois se rendera a uma súplica materna que achava aquele estado o fim do mundo. O que seria de seu filho, um rapaz idealista de 27 anos metido na selva? Ironia: o Nordeste de antanho repetiu amiúde a saga portuguesa de pôr seus filhos frente ao desconhecido. Lá ficavam mães, esposas e filhas às lágrimas nos casarões defronte ao mar Oceano chorando a partida e o destino ignoto dos familiares; aqui, nos engenhos de açúcar, nas pequenas vilas do Agreste e do Sertão, nos bolsões de miséria das cidades costeiras repetindo a epopeia lusitana. Era o apelo atávico manifestando-se forte muitas gerações depois. Murilo preferiu o meio termo: contentava a mãe e não desistia de partir. Rendeu-se portanto ao mundo das águas do rio Tocantins.
O jovem Murilo, na companhia de uma esposa aristocrática, montou consultório na carente cidade que talvez precisasse mais que seus habitantes de um médico para o definhamento que a afligiu anos seguidos. Soube tão bem comungar princípios e modo de vida com pessoas simples do lugar que a esposa, supondo transformação no que era um processo de convivência igualitária, abandonou-o horrorizada. Que dedicasse a pescarias e caçadas o mesmo desvelo dispensado à gente simples e pobre. Nem assim o jovem médico ficou só. Ao contrário, praticamente passou a morar nas casas onde havia enfermos. As cabeceiras de camas e os punhos das redes passaram a ser os lugares onde era facilmente encontrado. Não havia hora para expediente. O tempo físico do dia era o seu limite. Mas o excedeu prontamente, pois encontrou tempo para se dedicar à boemia com os amigos que aumentavam conforme consolidava a reputação de médico caridoso e competente. Não raras vezes mães de família — aflitas e envergonhadas — iam procurá-lo na Casa Verde ou no Rancho Alegre — rodeado de amigos e mulheres — para uma visita urgente a um acidentado ou socorro a um infeliz picado de cobra e já desenganado pelos outros médicos.
Ouvi minha avó de 94 anos resgatar da memória um dramático episódio familiar no qual ele demonstrou toda a sua perícia médica. Transportei-me à infância e lembrei-me do martírio de meu tio Ribamar com febre terçã maligna — o impaludismo. Fora desenganado por dois médicos na cidade. O rebuliço na família proclamava o encontro com a morte nas horas seguintes. Ele alternava estágios: arrepiava de frio, ardia de febre inquieto, suava abundante e depois queria fazer da fraqueza força, levantando da rede; não conseguia. Quando se extenuava febril e deitava na cama, minha avó podia avaliar o seu estado: o algodão da rede tinha a mesma alta temperatura do corpo do doente. Um fio de esperança motivou uma assembleia familiar. E se levassem Ribamar de avião para São Paulo? Valia gastar uma fortuna para salvar o filho, avaliaram meus avós. E filhos, genros e noras concordaram de pronto. Tia Socorro, estudando em Belém, foi convocada às pressas para acompanhar o moribundo na viagem a São Paulo onde Deusamar, outro irmão, aguardava-os.
Mas um prognóstico sombrio havia sido feito pelos outros médicos da cidade, desesperando a família e praticamente selando a sua sorte: se tentassem a remoção em busca de auxílio, ainda que por via aérea, ele morreria na viagem. Pressionada pela situação, minha avó Luíza teve a clarividência de uma última tentativa. Procuraria o novo médico. Ainda sem a intimidade que a dedicação dele aos pacientes fazia brotar quase instantaneamente, Luíza Bringel procurou-o. Chegou a sua casa com o coração na mão e lágrimas no rosto. Algumas pessoas contristadas com a sua dor abriram caminho e indicaram-lhe o médico numa roda de amigos. O primeiro impacto em minha avó, que desconhecia o novo médico, deixou-a com a sensação da perda irremediável do filho: então um menino daquele daria conta de tomar seu filho à morte? Era aquele o médico em que todo mundo botava fé? Os velhos médicos com décadas de experiência profissional haviam desenganado Ribamar, aquele o salvaria? Mas não desistiu, valia a pena qualquer tentativa. Ele foi solícito afastando-se dos amigos para ouvi-la. E ela dissolveu-se ainda mais em lágrimas:
— Doutor, venho porque me disseram que o senhor salva quem está ameaçado de não ver a luz do dia seguinte.
Ele foi lapidar:
— Quem lhe falou tem justa razão de estar vivo.
E não recusou o convite, era sempre prestativo quando procurado. Despediu-se dos amigos, entrou em casa apressado, pegou a valise de instrumentos, subiu no carro com ela e seguiram para o casarão da família na praça. Pelo caminho revigorou a fé dela com uma conversa descontraída e animadora. Ao descer, foi enérgico nas instruções que facilmente seriam tomadas como jactância, mas eram convicção profissional:
— Quero todas as janelas e portas abertas — e voltando-se para Luíza, solicitou: — Quero uma espreguiçadeira ao lado do doente, nós dois vamos varar a madrugada cara a cara — e troçou: — Se ele quiser, podemos jogar cartas.
Como toda noite de vigília aquela também foi longa e tumultuada. Inicialmente, o doente gemia alternando estados de consciência. Os suores eram grossos e constantes. O corpanzil de meu tio estrebuchava na rede e sua inquietação preocupava o médico. De hora em hora, doutor Murilo ministrava-lhe doses de remédio na veia. Firme em seu propósito de salvar vidas não desistiria de Ribamar enquanto ele respirasse, nem mesmo ao vê-lo arder de febre e dizer coisas desconexas que pareciam preces murmuradas em língua estranha. Angustiada, vez ou outra, Luíza vinha em chambre de dormir encostar-se ao portal de entrada do quarto. O corpo em posição estatuária e o olhar distante não dissimulavam seu atribulado estado de alma. Mantinha um olho no médico, outro no filho. Era a preocupação materna torcendo para que o filho resistisse e conferindo se o médico não se entregara ao sono. Nos momentos de calma encontrava Murilo fumando à janela aberta, olhos mergulhados na paz da escuridão lá fora, recebendo nos cabelos em desalinho e no corpo cansado a brisa suave que invadia o quarto. Ficava minutos calado, processando mentalmente artifícios e urdindo atalhos para vencer a doença. Estafava-se como o doente, mas não se curvava ao cansaço. Nas inquietações de Ribamar, colava-se nele.
Com a aproximação da madrugada e um galo distante desafiando os que se mantinham mudos, Luíza voltou ao quarto. Ribamar ressonava calmo na cama. Era a primeira vez que o via descansar. O médico encostado uma vez mais à janela aberta via a palidez do dia subir no horizonte. A casa mergulhada em silêncio absoluto parecia também descansar da agonia da noite. Murilo virou-se ao ouvir os passos de angústia aproximando-se, baforou a fumaça do cigarro e abriu um sorriso de vitória.
— Vá dormir e não volte mais aqui, dona Luíza — e acrescentou com voz de quem saboreava um xeque-mate: — Essa partida nós já ganhamos.
Luíza voltou ao quarto, fechou a porta, mas não foi deitar. Ajoelhou-se diante do oratório familiar e se pôs a rezar, murmurando preces atropeladamente. O coração apaziguado com a garantia dada pelo médico. A tal ponto transbordava de felicidade que em pouco tempo rezava em voz alta sem perceber. O meu avô, que também pouco dormira, abriu assustado os olhos vermelhos. ‘O que foi?’, indagou. ‘O médico disse que Ribamar vai melhorar!’ A casa encheu-se de vida e alegria com a boa nova. Na cozinha o cheiro de café e o burburinho das vozes receberam festivamente o dia. Foi quando Murilo apareceu por ali. Olharam-no como a um santo que descera do retábulo para ungir com bênçãos os fiéis. Sentou-se à mesa e minha avó ofereceu com gratidão:
—Doutor, tome café com bolo. O senhor merece isso mais que qualquer um aqui.
Ele olhou em volta como se procurasse algo:
— Eu quero mesmo é uma dose de uísque.
Bebeu o uísque lentamente, recusou outra dose da garrafa sobre a mesa da cozinha, levantou, despediu-se efusivamente da família, dizendo para Luíza: ‘lá no quarto descansa tranquilo o homem que diziam não veria o dia amanhecer’. Acendeu um cigarro e partiu deixando atrás de si um rastro de fumaça como um fio que liga vidas.”