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Cultura

Foto: Divulgação

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Ouvindo longamente o PassoPreto ou Blues e Aboios, segundo álbum  do cantor e compositor Nando Cruz, por vezes hesitei em escrever sobre. É um duplo desafio. O primeiro se refere à qualidade impressa em cada canção. O outro: Como falar de uma obra que dialoga tão forte e intimamente com as minhas idiossincrasias?

Passaram-se mais de vinte anos, desde o meu primeiro contato com o trabalho desse artista que nasceu potiguar, cresceu paraense e se consagrou em estúdios e festivais populares da região tocantina, quando residia em Imperatriz (MA). À época, ele havia sido selecionado por uma renomada editora, com a canção Sunseed, para um disco em homenagem a Raul Seixas. Mas os responsáveis nunca finalizaram o produto.

Suas canções que hoje são executadas em rádios do Nordeste e do Centro-Sul do país, eu acompanhei no berçário, quando as palavras ainda se articulavam em versos e os primeiros acordes surgiam. Além da voz agradável e da boa extensão vocal, ele também se destaca como compositor, utilizando uma paleta bastante rica. Capaz de colorir sonhos e fantasias, amenizando os tons macabros das desgraças nossas de cada dia, ampliando com muita beleza a paisagem sonora.

Que ele é apaixonado por Gonzagão, Dylan, Beatles, entre tantos, não é nenhuma novidade. A novidade mesmo é pintar uma tela musical com essas referências fluindo de forma tão equilibrada e elegante. PassoPreto ou Blues e Aboios traz, num valoroso emaranhado, sob o olhar folk, o rock, o blues, o baião, o aboio, o xote e sutilezas caribenhas. E o disco segue surpreendendo até a décima-segunda canção.

A primeira faixa, Bandeira Aberta, uma linda ode à capital maranhense, é um lenço branco hasteado gritando por paz e dias melhores para a chamada Jamaica brasileira que, apesar dos 500 anos de Brasil e dos mais de cem da abolição da escravatura, a região ainda padece do jugo da opressão e dos velhos arremedos coronelistas, embora a música não trate diretamente da questão. É uma canção com carisma pueril e nos apaixonam de cara. "Estou bandeira aberta, leve, meu coração de chumbo chora de rir (...). Em São Luís é assim, o caminho do sol, de tudo que vem pra ficar... Mas volto sempre, com a alma pra lavar, em tuas praias eu vim me derramar".

Beija é uma regravação. Está no seu primeiro disco, Besouro Barroco (2005). É provavelmente a música mais executada do artista. Mãe Fulô, canção de amor, um xote brejeiro, verdadeiramente digna de compor a trilha de um bom folhetim, um filme, algo assim. "Meu amor, abra janela dos teus olhos, nobre amor, veja como a noite já passou. Não sobrou nem escurinho, já não temo escuridão. Com você até atino em viver sozinho nesse mundo vão".

Na Mão é uma homenagem para rei nenhum botar defeito. "Quanto tempo ainda temos pra esperar? Quantas horas faz desde o dia em que nascemos? Tá tudo bem, os dias passam sem querer, mas vale a pena respirar. Você vem com sua imaginação, clareando como o sol, here comes the sun! Meus ouvidos bebem do néctar das canções, e o rei continua firme, e Erasmo também. (...) Acreditar é conceber o impossível, solução". E, com o carinho de quem não escapou das influências do rei Roberto e do não menos rei, Erasmo Carlos, me pergunto se eles já receberam uma homenagem tão bela como essa.

LugarNenhum é um hino, um retrato bastante revelador sobre sonhos libertários, e foi premiada no Festival da Canção de Conceição do Araguaia (Pará, 2007). Destaque também para a regravação Vidente, de Erasmo Dibel, que por si só já é excelente, e ficou muito bem nessa interpretação. Blues del Muerto é melancólica e marcante, foi premiada no FABER (Festival Aberto, Imperatriz, 1992).

O disco termina com Chuva Tardia, e é impossível ouvi-la sem me lembrar de Exupéry e de Zé Gomes Sobrinho, influências tanto para Nando, como para mim. "Ele canta como quem alcançou o céu, e desligou para ver as estrelas caindo. (...) Chuva tardia encerra o sol... Seus dedos violam o silêncio com um prazer de virgens, enquanto puxam num cordel os invisíveis; seu povo e mais mil almas".

Nando Cruz está preparando o seu terceiro disco e, entre outras coisas, trabalhando na pré-produção de um DVD. Atualmente o artista é diretor de Cultura da cidade de Miranorte (TO).

* Carlos de Bayma é jornalista, escritor, cantor e compositor.