E para você, o que é família? Esta é a pergunta feita pelo Houaiss, que está buscando sugestões para redefinir o significado da palavra família no dicionário. A campanha #TodasAsFamílias, promovida pela agência NBS com o Grande Dicionário Houaiss, recebeu mais de 3 mil sugestões de texto sobre o conceito de família, uma nova definição “sem preconceito ou limitações”.
“Recebemos sugestões de todos os tipos, o que sustenta nossa defesa por um olhar diverso e sem preconceitos para o mundo, mas se eu pudesse achar um ponto em comum entre elas, seria o uso da palavra amor, a mais frequente nas definições”, disse o sócio e vice-presidente de criação da NBS, André Lima.
A ideia para a campanha, segundo Lima, surgiu “a partir da nossa consternação” com a definição de família do Estatuto da Família, aprovado em comissão especial da Câmara dos Deputados, em 2015. Pelo texto, “define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
Para o relator da Comissão Especial sobre Estatuto da Família, deputado federal Diego Garcia (PHS-PR), o estatuto trata da “família-base da sociedade, da família que está esperando desde a promulgação da Constituição uma lei infraconstitucional que a proteja e que traga os princípios constitucionais dentro de uma lei ordinária”.
O vice-presidente de criação da NBS discorda da definição apresentada no Estatuto da Família. “É só olhar à nossa volta para perceber como esta definição é reducionista e anacrônica, não reflete, de modo algum, a realidade em que vivemos. O mundo é dinâmico, diverso e abrangente e a definição da palavra 'família' precisa levar tudo isso em conta. Hoje, estamos mais interessados em atualizar a definição e ajudar no debate sobre quais são os verdadeiros laços que unem as pessoas em forma de família”, disse Lima.
Amor
Para o microempresário Cláudio Maia, de 57 anos, o que manda mesmo é o amor. Há um ano, ele descobriu que seu filho de 17 anos é homossexual, mas diz que sempre achou errado manter uma definição padrão para família. “É muito radicalismo querer categorizar como normal ou não uma coisa que pode ter tantas facetas. Havendo amor, havendo cuidado, não importa se for um casal gay, ou um pai e uma mãe, ou dois pais ou duas mães, ou só um dos pais”, disse.
Cláudio se emociona ao falar sobre seu filho. “Eu tenho muito orgulho dele, ele é tudo de bom. É especial, educado, preocupado com o outro, e isso não tem nada a ver com homossexualidade. Sorte da criança que vier a ter ele como pai, seja biológico ou não”, disse.
Medo
O microempresário, que mora no Rio de Janeiro, diz foi criado em uma família católica, de uma maneira bastante conservadora e que quando descobriu a homossexualidade do filho houve um misto de sentimentos, como vergonha, preconceito e medo de como seria o futuro dele.
A família procurou a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh) para se informar e Cláudio diz que mudou sua mentalidade depois de entender mais sobre o assunto. “Isso não muda absolutamente nada, ele não é pior ou melhor que ninguém, o que falou mais alto [para a aceitação da homossexualidade] foi o amor. Nossa maior preocupação é a questão da segurança, porque infelizmente, assim como eu era, a sociedade é muito preconceituosa”.
Formações familiares
A campanha da NBS e do Houaiss tem o apoio da Abrafh e da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Para o presidente da Abrafh, Rogério Koscheck, muitos lares brasileiros não têm mais apenas uma família tradicional, como diz o Estatuto da Família. “Ele tem dois problemas sérios, um é eliminar qualquer conjugação homoafetiva, que é o principal objetivo do estatuto; e outro é descaracterizar formações familiares que são tradicionais, seja avó com neto, seja sobrinhos com tios e até mesmo crianças adotadas. Quando o estatuto fala o homem, a mulher e seus descendentes, podem entender que sejam apenas os biológicos”, disse.
Rogério é casado com Weykman e tem quatro filhos adotivos, todos irmãos. Ele conta que na época da votação do Estatuto sua filha mais velha, com 12 anos, observando toda a discussão, questionou se teria que voltar para o abrigo. “Antes mesmo de ser aprovado ele está criando problemas. Hoje eles são nossos filhos, estamos em um momento mais tranquilo porque os quatro já tem filiação [certidão de nascimento com o nome do casal], mas entendemos que a não aprovação do estatuto é uma segurança jurídica para nossa família também”, disse.
É um erro, para Rogério, impor valores religiosos à instituição familiar. “Se levar ao pé da letra o Estatuto da Família, uma das famílias mais conhecidas, não seria família, afinal Jesus Cristo não era filho de José”, disse o presidente da Abrafh, dizendo que espera que o Estatuto não seja aprovado pelo plenário da Câmara. “Esperamos mostrar que os valores do amor, do afeto, da preocupação, da educação, da transmissão de conhecimento e da ética são mais importantes que essa definição estreita e completamente fora da realidade”.
Retrocesso
Para o projetista Alexandre Louzada, de 38 anos, sempre que há um avanço social e dos direitos humanos, há uma tentativa reacionária de retrocesso por parte de pessoas “fundamentalistas e preconceituosas”. No caso do Estatuto da Família, segundo ele, “é de uma parcela dos deputados que tem pensamentos muito retrógrados e que tem uma visão muito retrógrada do que é o papel dos sexos, do que é a família, do que é a sociedade”, disse.
Alexandre é casado com Francisco e tem três filhos adotivos. Para ele, essa definição de família do Estatuto, assim como o projeto para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, é, na realidade, uma maldade. “Acho isso aviltante. Meus filhos eram crianças que estavam há cinco anos no abrigo, nenhum casal heterossexual quis adotá-los. Tiramos esses meninos de uma situação que não é favorável, damos casa, carinho e vem uns maus dizendo que eles não podem ter isso, que não somos uma família. Ainda tem o movimento para baixar a maioridade penal, isso está tudo relacionado, querem punir cedo, mandar para cadeias particulares, não querem dar a chance. Isso é de uma maldade sem proporção”, disse.
Atualização no dicionário
Segundo o diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do Grande Dicionário Houaiss, Mauro Villar, o instituto aceitou a proposta por seu interesse e pelo valor humanitário de dar voz a pessoas e grupos.
“Os dicionários são espelhos do mundo, refletindo a sua realidade. Registram os sentidos que cada palavra foi ganhando na língua através da sua história. Não podem, porém, ficar apenas com o passado, como é óbvio”, disse Villar. “Se o meio social se altera, se novos conceitos aparecem, se novas palavras e acepções de palavras já existentes surgem todos os dias, é preciso acompanhar essa dinâmica para continuar a espelhar o mundo”.
A versão online do dicionário deverá ser atualizada assim que o novo conceito, a partir da colaboração das pessoas, for definido. O diretor do Houaiss explicou que a 2ª edição do Grande Dicionário Houaiss existe apenas na internet e que há 15 anos alterações são diariamente introduzidas na sua base de dados.
“Com isso o dicionário ganha definições mais aperfeiçoadas, palavras e acepções novas, afina as suas etimologias e antedata os anos em que as palavras entraram na língua, entre outras melhorias. Essas mudanças são um processo natural, porque os dicionários definham e morrem quando não se atualizam”, disse Villar. “A família é um núcleo fundamental da organização social humana e merece toda a atenção se o seu conceito se altera”.
Para participar, as pessoas podem enviar as sugestões pelo site www.todasasfamilias.com.br e compartilhar a campanha nas redes sociais com a hashtag #todasasfamilias .(EBC)