Mesmo em comunidades onde o tráfico de drogas não chegou e contam com a presença das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), como no Rio de Janeiro, poucas são as mulheres em situação de vulnerabilidade social e econômica que recorrem às instituições do Estado diante da violência familiar.
Um dos motivos está justamente na falta de segurança. Elas se tornam mais vulneráveis. Segundo a juíza Adriana Ramos - presidente do Fórum de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ)-, quando vizinhos ou a própria mulher denunciam um episódio de violência à polícia ou à Justiça, muitas vezes ela precisa mudar de comunidade.
“A situação passa a ser um problema para o estado paralelo que existe ali, uma situação de risco; o agressor se torna persona non grata”, diz Adriana Ramos. Não há dados oficiais sobre número de casos ocorridos em favelas ou como eles se desdobram, mas integrantes do sistema de Justiça reconhecem que faltam políticas públicas voltadas a garantia dos direitos fundamentais das mulheres nessas situações.
Inicialmente, as UPPs foram um marco nesse sentido, no Rio de Janeiro, ajudando a coibir a violência doméstica nas comunidades onde foram instaladas. Mas a lua de mel acabou rápido. A partir de 2013, segundo dados da Segurança Pública do Rio, os homicídios voltaram a crescer.
“No começo, tivemos muitas prisões em flagrante porque as mulheres se sentiam seguras para fazer suas denúncias. Infelizmente, depois sentimos que o poder paralelo retomou esses espaços e as mulheres voltaram a estar isoladas e vulneráveis”, diz a juíza.
Violência e tráfico
Para tentar se proteger da violência, um caminho percorrido por algumas mulheres foi recorrer ao próprio tráfico. A solução, nesse tipo de caso não envolve restauração ou recuperação nas relações. “O resultado é mais violência; esse agressor será ameaçado ou punido, e essa mulher vai sentir medo de que tudo se volte contra ela”, explica Shirley Villela, coordenadora da Casa das Mulheres da Favela da Maré, comunidade com mais de 130 mil pessoas, no Rio de Janeiro. A inexistência do Estado nas comunidades carentes expõe as mulheres a vários tipos de crimes – entre eles, a morte.
No Brasil, cerca de 13 mulheres são assassinadas por dia em situação de violência familiar, segundo o Mapa da Violência/2015. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, determinou a todos os Tribunais de Justiça que criassem unidades judiciárias especializadas nos casos de violência doméstica.
CNJ
Atualmente, há 115 varas especializadas nesse assunto, espalhadas por 85 cidades brasileiras; ou seja, 1,45% dos 5.570 municípios. O número, no entanto, é bem aquém à necessidade do país; apenas de processos relativos à violência doméstica, tramitam na Justiça brasileira mais de 1 milhão. Durante reunião com juízes da área de violência doméstica, a presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, defendeu um esforço dos juízes no enfrentamento do problema, além de criação de mais varas especializadas.
“Entendo que por demandarem profissionais multidisciplinares [sua criação] é mais complicada, mas isso não pode ser empecilho para aprofundarmos esse trabalho. Precisamos de juízes e servidores com um perfil específico para lidar com esse tema. Um juiz é como um ativista pela paz e deve agir para pacificar a comunidade. Atualmente, muitos não estão preparados e atuam com preconceito contra a própria vítima, a mulher”, disse.
Na avaliação da delegada-chefe Sandra Gomes, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM), apenas uma atuação em rede, que conte com a ajuda de vários órgãos do estado, pode reverter o quadro de vulnerabilidade extrema a que esse público está suscetível.
“São muitas as violências pelas quais elas passam e o Estado falta em várias frentes. Nosso dever é integrar as ações para que essa mulher não desista de denunciar a violência, seja por medo, por não reconhecimento ou desconhecimento das portas de acesso”, defende ela.
Reviver
Vítima de violência doméstica por 34 anos, a porta encontrada por Ana Maria foi a da Casa da Mulher Brasileira (AMB). Sem nenhuma qualificação profissional ou dinheiro para contratar advogados, lá ela obteve apoio jurídico, psicológico e profissional. Sem esse respaldo, diz, não teria conseguido. “Enquanto o processo judicial corria, morava de favor na casa de pessoas que sabiam da minha situação e se comoviam. Agora, depois da decisão da Justiça, voltei a morar na minha casa e ele, que nunca me deixou trabalhar, nem estudar, teve de sair da casa. Estou aprendendo a viver novamente”, conta.
A Política Nacional de Combate à Violência contra a Mulher, criada pelo CNJ, propõe que entidades públicas e não governamentais devam ser convidadas a participar das iniciativas dos órgãos de Justiça por meio de parcerias. O estímulo deverá ocorrer principalmente nas áreas de segurança pública, assistência social, educação e trabalho. No caso de Ana e de muitas outras mulheres, foram as ajudas psicossociais, os cursos gratuitos e a posterior autonomia econômica que contribuíram para reverter histórias de dor, perdas e humilhações. (CNJ)