Imagine a dor de quem nasce e aos 60 dias de vida já experimenta o primeiro trauma: o completo abandono parental, sem deixar nomes, sobrenomes ou destino de partida. Depois, na infância, apesar de acolhido e criado, amorosamente, por uma mãe afetiva, só ter acesso a uma Certidão de Nascimento, por via judicial, há meses de completar três anos de idade e, neste registro, constar como “ignorado” todo dado de filiação, isto, após negarem, repetidamente, um reconhecimento da maternidade socioafetiva, o tornando assim, simbolicamente, “filho de ninguém”.
Com o passar do tempo e com o chegar de uma consciência social, este contexto passou a mexer com o Yuri Marcos Alves Silva que, ao lado daquela que o criou e já tentava uma solução, Marly Alves Aguiar, buscou auxílio da Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO) em Porto Nacional, município distante 62 km de Palmas. Na Instituição, após atendimentos iniciais, mãe e filho foram encaminhados para o Núcleo Especializado de Mediação e Conciliação (Numecon), onde a história de ambos comoveu a equipe, conforme explica a conciliadora que acolheu o caso no Núcleo, Khaise Nayara Pereira Marques.
“Quando recebemos esta demanda nós ficamos sensibilizados, pois se trata do tipo de caso o qual o cunho emocional envolvido termina superando a questão legal existente. A mãe nos relatou que há muitos anos buscava meios para formalizar o reconhecimento da maternidade socioafetiva, o que trazia a ela e ao Yuri muita insatisfação, pois de fato eles viviam essa relação maternal desde sempre, mas não conseguiam legalizar essa situação”, conta Khaise Marques.
Resolução do caso
Ao receber os encaminhamentos do caso, a defensora pública coordenadora do Numecon de Porto Nacional, Elisa Maria Pinto de Souza Falcão Queiroz, logo notou que se tratava de uma história inusitada, visto que o registro público de nascimento é um dos primeiros direitos garantidos a toda pessoa, sendo um marco inicial que formaliza a existência e as vinculações parentais de qualquer cidadão que vem ao mundo, o que não ocorreu no caso de Yuri.
“Eu tenho 12 anos de Defensoria Pública e nunca vi um caso parecido. Primeiro, a Certidão de Nascimento foi tardia, por via judicial, e sem constar sequer um dado sobre filiação, o que é atípico. Depois, ocorreram diversos impedimentos para o reconhecimento da evidente maternidade socioafetiva estabelecida, que é previsto por um provimento do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e pode ser realizado por meio de uma simples declaração em um cartório de registros, o que, infelizmente, não é o que acontece, o que termina interferindo no acesso a vários outros direitos”, pontua a Elisa Queiroz.
Para solucionar o caso, conforme explica a Defensora Pública, foi escolhido o caminho judicial, mas não uma ação judicial, pois Yuri já completou 18 anos, o que possibilitou a elaboração de um acordo no qual ele concordava em inserir o nome de Marly no assento de nascimento da Certidão, assim como o do já falecido ex-marido dela, a quem ele reconhece como pai. Dessa maneira, ficou estabelecido e reconhecido o vínculo socioafetivo entre a mãe, o falecido pai e esse filho.
“Nós protocolamos o acordo, o qual foi homologado no Cejusc [Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania] de Porto Nacional, com parecer favorável do Ministério Público Estadual. Por fim, eu me sinto grata por ter participado e conseguido obter uma solução favorável para essa história. Tenho certeza de que com esse nosso trabalho, nós, que somos a Defensoria, concretizamos um sonho, e isso não tem preço. Eu trabalho com essa finalidade mesmo, de resguardar direitos e concretizar sonhos a partir da minha ação”, externa a defensora Elisa Queiroz.
Realização familiar
Autônoma, aos 51 anos de idade e diabética, Marly Aguiar afirma que seu maior temor era partir deste mundo deixando o filho sozinho e sem conseguir resolver este problema. Mas que com o reconhecimento da maternidade ela se sente realizada.
“Eu já chorei tanto; antes era de tristeza, agora é de alegria. Eu não sei nem como agradecer a todos da Defensoria; só Deus sabe. Foram 14 anos de luta para chegar até essa que é a melhor notícia que já recebi na minha vida. 2020 estava sendo só de tragédia; e que me desculpem os outros, mas agora, para mim, este é o ano mais lindo que já vivi porque meu filho agora tem uma origem registrada. É uma realização familiar”, comemora Marly que em 2002, a pedido de um irmão, cuidou da mãe biológica de Yuri quando grávida dele; porém, 60 dias após o parto, ela fugiu sem dar notícias, deixando o bebê.
Para Yuri Silva, o principal envolvido neste caso, o desfecho positivo do reconhecimento da maternidade socioafetiva é a realização do maior sonho que já teve até então.
“Era revoltante ter sido criado a vida inteira com tanto amor pela minha mãe e não poder formalizar em um documento a nossa relação familiar. Eu tenho muito orgulho dela, que batalhou e segue batalhando por ela e por mim, por nós, sempre trabalhando muito para nos sustentar, sustentar a nossa família; por isto eu fazia tanta questão disso, de documentar que ela é a minha mãe. Além disso, eu finalmente pude deixar de ser filho de ninguém; aquela Certidão me trazia muito estresse. Mudar aquilo é a realização de um sonho para mim”, comemora Yuri.
Ampliar horizontes
Ainda conforme Yuri, com a nova Certidão em mãos, ele poderá ter acesso a documentos básicos os quais nunca teve, como RG e CPF, o que o impediu de se aprimorar academicamente, algo que agora será revertido.
“Eu perdi muitas oportunidades de me aprimorar, de criar um currículo; por exemplo: eu tentei me inscrever para concorrer a uma vaga no IFTO [Instituto Federal do Tocantins] e fui impedido porque não tenho as documentações. Eu perdi muita coisa, mas agora vou buscar novos sonhos, construir tudo o que não pude antes; o primeiro já foi alcançado, que é constar que a minha mãe e eu somos família. Os próximos são comigo”, mentaliza, determinado, o filho da Marly.