É fato inquestionável que a modernização melhorou a base material da civilização. Mas teria contribuído para melhorar as dimensões morais e éticas da Humanidade? A resposta é não. E a argumentação leva em conta aquilo que o professor Samuel Huntington, de Harvard, chama de “paradigma do caos”: Estados fracassados, anarquia, repulsa aos princípios democráticos, inclusive no seio das maiores democracias mundiais, caso dos Estados Unidos, quebra da lei e da ordem, ondas de criminalidade, cartéis de drogas, deterioração dos valores da família e assim por diante.
O caos se instala em todos os quadrantes do planeta, sob sistemas democráticos vivendo momentos de tensão e risco, e ante a frustração de não se alcançar a regra fundamental para a convivialidade planetária: a necessidade de que uma civilização se esforce para buscar e consolidar os valores em comum de povos de outras civilizações. Tarefa que parece cada vez mais distante pela diferença entre gentes e Nações, Ocidente e Oriente, muçulmanos, cristãos de todas as seitas, ateus, enfim, os povos que habitam o planeta nesse início de segunda década do século XXI. Será que não existiria um elo que pudesse transcender vontades individuais, uma corrente que fosse capaz de unir as fronteiras, agregar interesses, criar aspectos uniformes em todas as culturas?
Difícil. Mas sem essa unidade global em torno de anelos comuns, estaremos cada vez mais corroendo os níveis da vida humana no planeta. E ameaçando destruir os pilares da existência do ser humano. Essa projeção pode ser entendida como catastrofista, mas é isso mesmo. Não estamos vendo, a cada dia, a foice da morte abater milhões aqui e alhures? Já são mais de 2 milhões de mortos pela Covid-19. E quem garante que ameaças não estão à espreita?
O fato é que estamos vendo ressurgir a barbárie. A paisagem é mais agressiva do que aquela dos filmes do velho oeste americano, quando desfilam bandidos e homens da lei, uns matando os outros, com balaços que nunca esvaziam os arsenais (como é divertido ver Clinton Eastwood, dirigido por Sérgio Leone, mastigando seu charutinho e fazendo um escarcéu). A paisagem de hoje é de barbárie. As democracias – governo do povo pelo povo e para o povo, na antológica frase de Abraham Lincoln em 1863 – estão sendo corroídas por dentro, usando-se artifícios como dribles legais em nome da Constituição, falsidades, mentiras tonitruantes repetidas à exaustão para que ganhem o tom da verdade.
Pois foi isso que ocorreu nos EUA, com Donald Trump, ocorre em muitas Nações e também por nossas plagas, como se viu com esta preciosa pérola sobre democracia, pinçada do dicionário do nosso governante-mor: “Quem decide se o povo vai viver democracia são as Forças Armadas”. Ora, trata-se de um libelo contra a democracia, que apenas traduz a índole autoritária do Chefe de Estado do país.
Imagine-se, agora, o modo de vida do planeta nos dias de amanhã, quando se sabe que a pandemia abrirá um rombo de cerca de US$ 12 trilhões na produção econômica global, tirando o Brasil do ranking das 10 maiores economias mundiais. A pobreza mundial aumentará, fazendo padecer ainda mais massas carentes, como as do nosso país, que tem 50 milhões abaixo da linha da pobreza, os EUA, com 25 milhões e a Europa com 70 milhões.
A tendência dos países é de tentar salvar suas economias, ampliar o cobertor social, salvaguardar seus Tesouros, apesar de os Estados Unidos de Joe Biden anunciarem políticas abertas aos imigrantes, respeito à pluralidade, defesa do meio ambiente, o que nos leva a imaginar que os grupos do nacional-populismo irão fazer pressões em sentido contrário.
Estamos diante da possibilidade de a China se transformar na maior potência econômica já nos próximos anos, conduzindo-nos à outra hipótese: as democracias serão instadas a mudar posturas, flexibilizar políticas, banir preconceitos sob o pragmatismo dos mercados. E a evitar as ameaças que, segundo o Relógio do Juízo Final (criado em 1947 por cientistas atômicos), pairam sobre nossas cabeças: avanços russos, americanos e chineses em mísseis hipersônicos, riscos de uma guerra entre a Índia e o Paquistão, o desmantelamento do acordo nuclear iraniano e o risco de guerra com os EUA, novos armamentos da Coréia do Norte e a Guerra Fria 2.0 entre Pequim e Washington.
Que os ponteiros do Relógio nos afastem do Juízo Final.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato.