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Opinião

Foto: Divulgação

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Imaginem a aflição de um náufrago à procura de uma tábua de salvação, qualquer coisa para agarrar no meio do oceano. O desespero de famílias que perdem, nesses dias de pandemônio, entes queridos. Ou a angústia trazida por desastres ambientais, como o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em Minas Gerais, no dia 25 de janeiro de 2019, que deixou um rastro de destruição e mortes.

Estamos vivendo momentos de aflição e angústia. A ansiedade cai sobre nós com seus reflexos sobre o cotidiano, paralisando projetos iniciados, afastando outros que ainda estavam na prancheta do planejamento e, acima de tudo, injetando em nosso espírito a incerteza, a dúvida, o medo. Por mais planejada que seja uma pessoa, ela se junta ao gigantesco cordão dos desvalidos que se sentem perdidos por ter suas vidas desorganizadas.

É certo que a resiliência e a coragem de enfrentar os mais terríveis males fazem parte do roteiro da sobrevivência humana. Por isso, vemos perfilados na arena do combate gente de todos os calibres, homens e mulheres, jovens e velhos, dispostos a afastar ameaças e a lutar pelo bem-estar. Mas o fato é que esse vírus que contamina nossos corpos e atormenta nosso espírito causa mudanças em nosso dia a dia. Na vida de uns, produz profunda alteração, em outros, provoca o reordenamento de tarefas cotidianas, introduzindo novos hábitos, determinando rotas diferentes dos traçados originais. Nossas vidas foram, sim, desarrumadas.

Por mais que o empresário, o executivo de um grande grupo, quadros tarimbados e experimentados na arte de enfrentar desafios, acreditem que pouca coisa mudará em suas vidas, o amanhã não será o mesmo. O trabalho assume nova modelagem com o enxugamento de estruturas, o home office, a simplificação da papelada, o redimensionamento de budgets, a procura incessante de inovação, o uso da internet, enfim, as redes sociais funcionando como extensões de nosso cérebro e nossos braços.

Mas as mudanças de ordem material, em pleno curso, terão infinitamente menor impacto do que as forjadas por nossa mente. A começar pelo conceito de tempo, morte e vida. Sêneca (4. aC – 65) já pregava: “Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que já passou por nós sem que tivéssemos percebido. O fato é que não recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores”. 

A cada dia dos recordes de mortos, somos levados a enxergar que a eternidade está ali, a um palmo. Os dribles mentais que às vezes costumamos fazer, pensando que temos ainda o vigor da adolescência, a capacidade de saborear as coisas boas da vida, fenecem.

O translúcido espelho da realidade está ali adiante de nós. Como ia dizendo, no plano espiritual o facho das mudanças será bem luminoso. A solidariedade, por exemplo, é uma das sementes a germinar na seara dos valores. Viveremos com mais intensidade a virtude da amizade, que é a cola da fraternidade. Os amigos serão inseridos no círculo do compartilhamento, característica de uma sociedade convivencial. Bem sabemos que a rotina do cotidiano forma oceanos entre amigos, os laços vão se desmanchando, o tecido social se esgarça na poeira do tempo. Por isso, teremos de batalhar para que o distanciamento não maltrate a integração espiritual, procurando retomar os caminhos encruzilhados do passado, evitando a competitividade leonina do presente, reconhecendo que o viver sob intenso sufoco corrói a humanidade que nos habita.

Teremos de recolocar a vida e toda sua intensidade no mais alto pedestal dos valores. Hoje, de tanto ouvirmos a numerologia da morte, este ato final da espécie torna-se banalizado. A imaginar “um tanto faz, tanto fez”, como se a vida não fosse o sagrado dom que Deus nos deu.

Poderemos, sim, ser competidores, ambiciosos, heróis de grandes empreendimentos, sem esquecer, porém, nossa identidade humana. Pinço Confúcio: “a humanidade é mais essencial para o povo do que água e fogo. Vi homens perderem sua vida por se entregarem à água ou ao fogo; nunca vi alguém perder a vida por se entregar à humanidade”.

Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato.