As democracias padecem em ambiente de crise. Uns e outros, aqui e alhures, portando a bandeira do bem da coletividade, fazem pontuações de viés autoritário, sem excluir sinalizações de “convulsão social’, como se as massas estivessem rogando aos protagonistas com mando sobre o poder militar intervenção (um ponto fora da curva) na direção do Estado. Estaria, assim, justificado um “golpe”, um ato de força em pleno início da terceira década do século XXI.
Para não dizer que esse tipo de ameaça ocorre apenas no seio de democracias incipientes, sustentadas por instituições não plenamente consolidadas, como a brasileira, que vagueiam para lá e para cá, sob o empuxo de pressões e contrapressões, o fato ocorre também em outros sistemas. A democracia francesa é considerada uma das mais fortes do planeta, sendo considerada a que acendeu o farol da liberdade no ciclo contemporâneo. Pois bem, em abril passado, mil membros das Forças Armadas da ativa e vinte generais da reserva assinaram uma carta aberta onde afirmavam que a França estava a caminho de uma “guerra civil”, culpando “apoiadores fanáticos” pela divisão social, entre eles, os islamitas que estariam tomando conta de regiões inteiras. O país estaria em perigo.
Quem diria que isso poderia ocorrer no berço contemporâneo da democracia? Bravata dos generais? Maneira de cutucar a onça com vara curta, melhor dizendo, alertar o presidente Macron para a imigração descontrolada? Voltemos aos nossos trópicos. Por aqui, tem sido usual a resposta da esfera política para amenizar as crises: as instituições estão funcionando. Ora, não é bem assim.
Nunca o Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal, foi tão questionado e submetido a um bombardeio incessante. Ministros sendo objeto de ferrenha crítica em redes sociais e em plenário de casas congressuais, alguns considerados “suspeitos” por terem sido nomeados por fulano e sicrano, decisões que seriam de competência do Poder Legislativo, outras inseridas no bornal de recompensa a determinadas figuras.
Os legisladores, por sua vez, por mais que se comprometam em votar de acordo com as demandas sociais, acabam decidindo, por maioria, aprovar pautas do interesse do Poder Executivo, integrados de corpo e espírito ao chamado presidencialismo de coalizão, que se ancora no toma lá, dá cá. Os dribles de um lado e de outro exibem as constantes manobras para viabilizar a governabilidade, como emendas parlamentares, orçamentos “secretos” e quetais. Mesmo assim, são volumosas as tensões entre a comunidade política e o Palácio do Planalto.
As reformas, de vida tão prolongada nas pautas congressuais, ganham camadas de bolor e cores do descrédito. A própria reforma política entrou no índex das coisas imexíveis, só avançando normas defendidas pelo dono da caneta com maior carga de tinta, o presidente da República, defensor, por exemplo, do voto impresso ou coisa assemelhada, como um papel para garantir que o eleitor votou. Um demérito à urna eletrônica, que era, até então, o nosso cartão de modernidade no panorama eleitoral do planeta. Um retrocesso está para ser aprovado. Mais grana e mais burocracia.
Quando teremos apenas nove, oito ou sete partidos? Partido virou empreendimento negocial. Em função do descrédito das entidades partidárias, todas se juntam no pântano das negociações, o que motiva a permanência de 35 siglas e a tentativa de se chegar a 70. Os fundos partidários semeiam os recursos reunidos com boas votações, como se viu no caso do desconhecido PSL, que aparece hoje na linha de frente dos mais ricos. E onde estão os escopos ideológicos ou doutrinários? No baú das coisas esquecidas.
Tendo como pano de fundo esse queijo suíço, de buracos por todos os lados, o mandatário-mor, com sua índole guerreira, de atirador de vanguarda e retaguarda, bola artifícios para sustentar o tempo de seu assento na cadeira presidencial. Ganhará as eleições de 2022, garante ele, e derrotará o adversário a quem se refere como o “nove dedos”. Por isso, prega o voto impresso, aquele tipo que, na década de 30, era a arma secreta dos “coronéis” da política. (P.S. “Seu coroné, posso abrir o envelope para saber em que tô votando? Tá doido, cabra, ocê não sabe que o voto é secreto?”)
Pergunta de fecho: seria viável um golpe no Brasil? Gasset escreveu que o homem é ele e suas circunstâncias. Eis algumas: apoio social, economia saudável, pandemia controlada, contexto internacional e imagem do Brasil, felicidade nacional líquida e ameaça de divisão extremada na sociedade.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato.