Foi um divisor de águas, ou ainda, o maior dique que se construiu para evitar a inundação da política com os destroços causados pelas ações sempre pensadas, nunca impensadas, do atabalhoado presidente Jair Bolsonaro. E esse dique contou com a destreza de construtor e carpinteiro, qualidades do ex-presidente Michel Temer. E por que este é considerado o último divisor de águas? Pelo nível de enchente provocada junto ao Poder Judiciário com repercussões de monta sobre as cúpulas congressuais. Um palavreado desbocado nunca ouvido.
Qualquer novo tsunami, se ocorrer, não apresenta escapatória: o construtor de diques, Michel Temer, não teria suporte moral para vir a trabalhar nos estragos refeitos, os juízes do Supremo se dariam por esgotados e conscientes de que nada se pode esperar daquele navio que dispara torpedos intermitentes. O termo impeachment, hoje apenas uma palavra a frequentar o dicionário de Brasília, ganharia fundamento e o desembarque das tropas aliadas do capitão do transatlântico seria um ato pensado sob o fluxo de ondas fortes que inundariam os dutos da opinião pública.
Vamos analisar ponderadamente esta reflexão. A Opinião Pública se origina de áreas de pensamento que se formam, sem articulação prévia, juntando-se em bolhas. Geralmente tais bolhas nascem no meio das classes médias, e costumam ter uma antena virada para os fatos. A área política, por mais que junte grupos de interesse comum – verbas, benefícios, espaços na administração – tem o dom de autopreservação. Não pula o abismo. E confere seus passos com o caminhar dos grupos de Opinião Pública.
Diz-se que Bolsonaro não mudaria por ter um foco para iluminar suas bases. Mas tais bases não chegam a 30%. E tendem a diminuir se alinharmos os fatores que poderão estreitar o tamanho dos contingentes: apagões de energia, decorrentes da crise hídrica; continuidade da crise sanitária; pequena reação da economia, com o desemprego jogando alto; crise política sem passos avançados; auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, sem estofo para agradar milhões de famílias.
Portanto, é de se prever um Bolsonaro mais contido, sob pena de que continue a agradar parcela de seu eleitorado, mas a desagradar os maiores conjuntos eleitorais. Os políticos agirão com um olho plantado no Planalto, outro na planície. O PP que, aliás, não quer Bolsonaro em seus quadros, vai se esforçar para acender uma vela a Deus, outra ao demônio. E a economia? O que resta a Paulo Guedes fazer para agradar o tal mercado?
Dito isso, vem à tona a figura de bombeiros e construtores de diques. Michel Temer, em nova escalada de adjetivos ferinos, poderia voltar a ajudar o presidente com novas cartas e compromissos? Difícil. Depois de recuperar uma imagem borrada por “jogadas” que se conhecem, seria pouco provável que o ex-presidente topasse se meter em uma enrascada, a ideia de vir novamente a por panos quentes entre os Poderes.
Quanto a estes, a cautela impera. Todos os ministros estão vacinados contra novas mordidas do “cão raivoso”. Alexandre de Moraes, por exemplo. Um magistrado de alto gabarito, professor de Direito, e Luis Roberto Barroso, um dos mais preparados magistrados, se dariam ao exercício de, mais uma vez, entrarem numa espécie de pacto de não agressão? Nem o papa Francisco daria endosso a mais uma tentativa de harmonia.
Por todas essas razões, o país entra na era do divisor de águas. E qualquer pedra que Bolsonaro atirar em Chico baterá na cabeça de Francisco, a exibir a disposição dos juízes do STJ, TSE e STF de agirem como um corpo unitário. Os riscos estão postos. Por último, convém lembrar a índole autoritária do nosso mandatário-mor. Para ele, ou tudo ou nada. Mas os militares dariam endosso a um ato golpista? Bom lembrar que os vasos comunicantes fazem a sociedade respirar em conjunto, como um todo inseparável.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato.