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Opinião

Foto: Divulgação

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O ensino domiciliar (homeschooling) é uma modalidade que se pretende aplicar na educação básica do Brasil. Hoje, o ensino é realizado no ambiente escolar, dentro das escolas e dos colégios, em uma coparticipação de responsabilidades entre União, Estado, Distrito Federal e municípios. A União tem competência para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional, enquanto aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, além da própria União, compete proporcionar a forma de acesso à educação. Assim, cada ente federativo tem sua responsabilidade na administração desse ensino. E, apesar de possuir uma série de problemas e dificuldades, sobretudo pela ausência de investimento e falta de valorização dos profissionais de educação, o ensino escolar cumpre muito mais do que função meramente de transmissão de conhecimento.

O ensino escolar cumpre uma função cidadã, de formação do aluno para a sociedade, tendo em vista que é nesse ambiente escolar que o aluno exerce suas relações sociais iniciais. É dentro desse ambiente que as amizades se estabelecem, que a criança, o adolescente, o jovem tem a capacidade de exercer uma série de outras atividades que não adstritas à sala de aula e que serão fundamentais para seu desenvolvimento enquanto pessoa, enquanto ser humano, enquanto profissional no futuro.

É no ambiente escolar que se aprende a exercer a relação social inicial pela troca de informações com os colegas, de informações com os professores e professoras. Na relação que existe no âmbito interno da escola, o aluno se prepara para enfrentar o mercado de trabalho no futuro, onde ele também precisará lidar com pessoas, no seu ambiente de trabalho, também precisará estabelecer relações de amizade, de hierarquia, de obediência e disciplina.

O ambiente escolar traz uma formação humana que vai além do conhecimento, vai além do ensino meramente burocrático, do ensino que tem relação com conteúdo, pois permite de fato o desenvolvimento do aluno como cidadão do futuro.

Já o ensino domiciliar é uma outra modalidade de relação com o ensino. O ensino domiciliar aplicado na educação básica é realizado eminentemente, ou pretende ser realizado eminentemente, dentro do ambiente domiciliar. E esse tolhimento do convívio social tende a ser bastante prejudicial para o aluno, para a criança que está em formação.

O ambiente domiciliar muitas vezes pode oferecer uma série de riscos que o ambiente escolar elimina ou permite a identificação desses riscos. Nós temos um quadro de violência contra a criança e contra o adolescente no nosso país que é muito preocupante. A criança e o adolescente são vítimas de violência de toda ordem, seja física, psicológica e sexual. Há uma série de tipos de violências das quais as crianças e adolescentes são vítimas, que, muitas vezes, só são identificadas no ambiente escolar. Os professores, sobretudo na educação básica, possuem a competência de identificar que o aluno sofreu algum tipo de abuso. E não nos deixemos enganar: a realidade deixa claro que boa parte dos assediadores sexuais contra crianças e adolescentes são pessoas que fazem parte de um convívio íntimo da família, seja um tio, um padrinho, um primo. Não é incomum também identificarmos em nossas redes sociais notícias de abusos cometidos por pessoas ainda mais próximas, como padrastos, namorados, avôs, que deveriam zelar pela proteção das crianças e adolescentes.

A comunidade escolar e o ensino presencial na educação básica têm um papel fundamental de reconhecer e denunciar que a criança ou o jovem está sendo vítima de algum tipo de violência. A criança vítima de abuso pode ter alguma mudança de comportamento que permite que as pessoas que fazem parte da comunidade escolar identifiquem o problema e deem o direcionamento necessário junto aos conselhos tutelares e a segurança pública. A violência domiciliar é de difícil evidência justamente porque relacionada a um contexto protegido e inviolável, contra pessoas que estão em formação e que se veem traumatizadas pelo cometimento do delito. Fora do ambiente escolar, essas crianças ficarão ainda mais vulneráveis a uma realidade que se sobrepõe à defesa daqueles que desejam instituir o ensino domiciliar.

O ambiente escolar também permite que, dentro de uma realidade social cruel em que a fome e a miséria são presentes, o aluno realize suas refeições básicas. Não é raro que o desemprego empurre as famílias a uma realidade de pobreza alimentar e nutricional, que para crianças e adolescentes que estão em formação pode gerar uma fragilidade da saúde ainda maior. A escola e o ensino presencial permitem que o aluno realize uma ou mais refeições que, para aquela pessoa, será a única de todo um dia.

O ensino domiciliar, por outro lado, poderá ser utilizado, inclusive, para forçar essas crianças e adolescentes a realizarem atividade profissional precoce. É que ausentes do ambiente escolar, eles poderão ser incentivados a trabalhar, para ajudar no orçamento familiar. Se mesmo com a escola presencial e obrigatória vemos as ruas repletas de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, exercendo venda informal nos semáforos das grandes cidades, o ensino domiciliar favorecerá a utilização da mão de obra infantil para o sustento da família.

A proposta do ensino domiciliar traz uma série de incertezas e uma serie de riscos que precisam ser muito bem avaliadas no Senado. O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora segue para análise dos senadores e senadoras.

A tendência é que o ensino domiciliar gere uma precarização ainda maior da educação brasileira. O ensino domiciliar faz parte de uma bandeira defendida por uma corrente ideológica conservadora que pretende excluir essas crianças do ambiente escolar. A principal alegação é a de que as crianças possuem um ensino que não condiz com a educação promovida pela família, que estão obtendo uma formação tendente a algum tipo de corrente ideológica, quando na verdade o ensino domiciliar é a expressão maior desse tipo da ideologização da educação.

Portanto, é necessário que o Senado, ao analisar esse projeto, tenha um olhar muito atento, um olhar desconectado daquilo que propaga o Governo Federal, um olhar desconectado das correntes conservadoras que defendem o ensino domiciliar e que possam fazer uma análise com o foco na criança e na proteção integral da criança, que é uma determinação constitucional. É essencial que os senadores percebam os riscos que o ensino domiciliar traz e percebam a dificuldade que seria a implantação de um ensino domiciliar em um país tão complexo, tão cheio de dificuldades e de diferenças sociais. O ensino escolar é a modalidade mais adequada para a formação das crianças e dos adolescentes no Brasil e mudar esse rumo, neste momento em que já estamos enxergando os prejuízos educacionais provocados pela pandemia, seria um grande risco de colocar a educação brasileiro em um grande abismo.

*Leandro Madureira é advogado, sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados, especialista em Direito Previdenciário e especialista em Políticas Públicas, Infância, Juventude e Diversidade pela UNB