Punições mais rígidas, programa de educação desde as categorias de base e políticas afirmativas envolvendo clubes, federações, patrocinadores e poderes públicos foram algumas das medidas de combate ao racismo no futebol defendidas por senadores e debatedores em audiência pública da Comissão de Esporte (Cesp). O debate, nessa quarta-feira (13), teve participação da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e do presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD), José Perdiz de Jesus, além de representantes do Ministério do Esporte e da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entre outras entidades. Os participantes alertaram para o crescimento de denúncias de discriminação dentro e fora do campo nos últimos anos.
Segundo relatório do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, em 2014 a entidade monitorou 25 denúncias de racismo no futebol. Em 2022, foram 64 casos. Já neste ano, até agora, esse número chegou a 90.
Para o presidente da comissão, senador Romário (PL-RJ), o racismo no futebol ainda é uma chaga da qual o mundo não se livrou. Ele lembrou que, durante sua carreira como jogador, poucas vezes presenciou pessoas negras em cargos de comando e gestão como técnicos, diretores ou presidentes de federações esportivas. Na sua avaliação, é preciso enfrentar a discriminação racial no futebol enxergando que esse é um problema estrutural, que acaba refletindo no comportamento da torcida.
"No futebol brasileiro, a rivalidade clubística costuma criar um mundo à parte onde tudo é permitido ou que, no calor da disput,a ofensas e humilhações de natureza raciais são permitidas ou aceitas. Não podem, são condutas criminosas, tipificadas na legislação. E o futebol, como espelho da sociedade, deve ser o primeiro lugar a não admitir qualquer tipo de preconceito ou segregação. Não tolerar a intolerância. Não aceitar o inaceitável", afirmou o senador.
Prisão de torcedores
Na opinião do senador Jorge Kajuru (PSB-GO), autor do requerimento para promoção da audiência pública, o Brasil precisa avançar no sentido de aplicar punições mais rigorosas contra quem pratica esse tipo de crime no futebol, por ofensas ou atitudes tanto de torcedores quanto de gestores. "Essa história de torcedor que comete crime e é apenas punido no dia do jogo, fica 90 minutos numa delegacia, não na cela, numa sala, e depois vai embora para casa. Na Inglaterra não, o sujeito fica preso. Então ele tem que ficar preso dois dias na cela, não é em sala. Porque só o sujeito ficando preso pode aprender a mudar e saber que a punição é rigorosa realmente".
Nesse sentido, Romário questionou o presidente do STJD se ele considerava o atual regulamento da entidade e a legislação vigentes suficientes para que as penalidades sejam proporcionais aos crimes cometidos.
Para o presidente do tribunal, que é uma entidade autônoma e independente, a atual legislação para punir o criminoso na Justiça comum já avançou muito e, na sua visão, consegue atender à exigência de uma penalidade mais severa. Já em relação às competências do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, José Perdiz de Jesus considera que as legislações e regulamentos poderiam ser aprimorados. Ele classificou o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) defasado. "É possível sim, penso eu, aperfeiçoar um pouco mais essa legislação. O que tem ocorrido? Nós temos uma multa pecuniária e, para os clubes, acaba que na verdade o STJD não consegue alcançar especificamente o torcedor. Consegue de que maneira? A gente proíbe a entrada do torcedor identificado. O STJD diz ao clube mandante: este torcedor Fulano da Silva não pode entrar durante 720 dias ou durante 1.320 dias no estádio, daí essa competência [de fiscalizar a não entrada do torcedor] é do clube mandante", afirmou.
Atualmente o Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê multa ao torcedor que cometer crime de racismo nas praças esportivas que vai de R$ 100 a R$ 100 mil. A pena pode se estender com a probabilidade da perda do mando de campo para o time do torcedor criminoso — a mais eficiente e educativa das penalidades, para Perdiz de Jesus. Ele reconheceu que, em muitas situações, é difícil manter o torcedor banido afastado dos estádios por falta de fiscalização. "Jogar sem torcedores é uma pena que eu reputo a mais grave para os clubes, para essas questões. Por quê? Ela tira o torcedor, que é significativo para a partida, ela tira a arrecadação dos bares ali dentro dos estádios, ela retira a venda de produtos oficiais dos clubes, dos jogadores, então são questões significativas".
Programa governamental
A ministra Anielle Franco, que também foi atleta, explicou que os Ministérios do Esporte, da Igualdade Racial e da Justiça fizeram parte de um grupo de trabalho e lançaram um plano de ação do governo federal para o combate ao racismo no esporte, com 19 ações efetivas. De acordo com ela, o programa pensou em políticas afirmativas a serem aplicadas dentro e fora do campo, mas que também possam auxiliar na reformulação da estrutura social que engloba o mundo esportivo, como o futebol.
As iniciativas de conscientização, educação e parcerias com entidades visam atingir desde as competições de base até aquelas de elite, disse a ministra. Anielle ressaltou que, para se avançar nesse combate à discriminação racial no esporte, é preciso transversalizar as pautas. "A gente não pode fazer com que crianças que se inspiram no Romário, em mim e em tantas outras pessoas por aí que ainda hoje são competitivas deixem de praticar por conta de um racismo que não é somente estrutural no nosso país, mas é um racismo que assola na nossa sociedade de várias maneiras. Por isso o caso do Vini Jr. é emblemático", citou a ministra, referindo-se aos ataques racistas sofridos pelo atacante brasileiro que joga no Real Madrid. Os insultos a Vinícius Júnior aconteceram em jogo do Campeonato Espanhol, conhecido como La Liga, numa partida contra o Valencia.
Entre as ações do programa, estão: estruturação de dados, estudos e diagnóstico; interlocução com as entidades esportivas para a implementação de processos formativos; campanhas educativas continuadas e recorrentes; diálogo com a Justiça Desportiva; e debater o tema dentro dos próprios clubes. Além disso, o plano estuda retomar a elaboração, junto com o Congresso Nacional, de pontos que foram vetados na Lei Geral do Esporte, como a figura da Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e Discriminação no Esporte e o Plano Nacional de Cultura de Paz no Esporte.
O plano foi detalhado pela ministra e pelo chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade da pasta, Dênis Rodrigues da Silva, e o representante de Ministério do Esporte, Diogo André Silvestre da Silva.
Perda de pontos
Na opinião do diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Medeiros Carvalho, é preciso avançar na adoção de medidas mais efetivas. Ele defendeu que, em casos de crime, tanto o torcedor como o clube sejam severamente punidos. Para Carvalho, a penalidade com o sistema de perda de pontos dos clubes em campeonatos, seria um grande avanço no sentido de responsabilizar todos os envolvidos no ato discriminatório.
Carvalho ainda defendeu que a legislação ou regulamentação assegure que a comissão de arbitragem paralise o jogo em caso de manifestação racista, mesmo que vinda de apenas um único torcedor. "A gente precisa avançar, a gente precisa responsabilizar os clubes. Afinal de contas, tudo o que acontece dentro de um espaço, dentro de um estádio é de responsabilidade dos clubes. A gente observa que conseguiu avançar muito em relação à remessa de objetos em campo quando os times começaram a perder pontos. Hoje qualquer estádio em que a gente entre tem lá a mensagem no telão dizendo que é proibido arremessar objetos no estádio. A maioria dos estádios no Brasil não fala da questão do racismo no Brasil".
Ele ainda citou como ações efetivas o reforço na rede de proteção, acolhimento e estímulo aos atletas que denunciam atos discriminatórios, em vez de se tornarem alvo e sofrerem represália. Além disso, reforçou a importância da instalação de mais câmeras para a fiscalização e identificação de atos discriminatórios na arquibancada, a ser usada como no sistema de VAR (Video Assistant Referee).
Ainda de acordo com o levantamento do Observatório, 41% dos jogadores e das pessoas que trabalham com futebol disseram que já sofreram racismo no meio esportivo.
Inovações
O gerente de desenvolvimento e projetos da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Leão de Andrade, informou que a entidade, por meio da liderança de Ednaldo Rodrigues, primeiro negro a chegar à presidência, tem formalizado parcerias, campanhas e planos de ação, preocupada com o número crescente de denúncias de racismo tanto em competições nacionais como internacionais.
Andrade citou como exemplo a campanha da CBF (à qual a Fifa posteriormente aderiu) “Com racismo não tem jogo”. A ação veio após os ataques feitos a Vinícius Júnior e, segundo Andrade, teve grande repercussão e se tornou referência de iniciativa educativa.
Nessa frente de atuação, o gestor disse que a entidade tem trabalhado em parceria com os Ministérios da Justiça e do Esporte para colocar em execução o Programa Estádio Seguro. O objetivo, segundo ele, é que pelo menos nas principais competições sejam instaladas câmeras de reconhecimento facial e biometria para identificação de torcedores banidos, ou até mesmo para reforçar ações de combate a novos crimes.
Andrade também defendeu a reformulação de regulamentos e um sistema de monitoramento antidiscriminação (com a adoção um quinto oficial de partida ou uma quinta câmera de VAR, atuando na fiscalização direta dos torcedores), além do programa de relacionamento com as torcidas. "A gente entende que essa interlocução com as torcidas é o principal caminho para conscientização e para essa mudança cultural que precisa acontecer em relação à homofobia, em relação à violência", disse. (Agência Senado)