O psiquiatra do Núcleo de Acolhimento e Acompanhamento Psicossocial (NAPsi) do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO), Wordney Carvalho Camargo, reforça que o feminicídio é o “clímax de um processo de violência” que, normalmente, se instala no início de um relacionamento conjugal, afetivo ou ainda “muitas vezes é resultado de uma questão cultural. De um modo geral está ligado com a percepção masculina de ser dono, da questão da possessão da figura feminina e não aceitar que as coisas aconteçam de forma diferente daquela que ele espera.”
Psicólogo também do Napsi, Sérgio Baggio ressalta que a violência doméstica existe ao longo de toda a história antropológica, no entanto, o aumento do feminicídio pode ser desencadeado pelo fato da mulher não aceitar ou se sujeitar a certas situações. “Ao meu entendimento, a mulher está mais empoderada, ela tem buscado o seu lugar, tem lutado, muitas vezes no relacionamento abusivo, ela tem buscado o seu espaço, e aí gera o conflito, gera a contradição, e aí a violência acontece nesse lugar em que a mulher tenta buscar o seu lugar, buscar sua identidade, dizer o seu não, se impor.”
E nestes conflitos existem vários pontos a serem ponderados. Segundo o psicólogo, não dá para atribuir um perfil de uma mulher vítima de violência doméstica, mas sempre há um agressor, uma pessoa adoecida e fechada na sua necessidade. "Uma pessoa que tem dificuldade de lidar com limites, com aquilo que não está na sua expectativa, nas suas frustrações, que tem dificuldade de lidar com a contradição, com a opinião diferente, com expectativas diferentes das suas próprias".
Nesse processo de violência, existe a relação com o gênero. “É onde pode imperar o poder, a manipulação, a força. É onde a loucura pode se estabelecer com mais tranquilidade. Ele não pode bater, não pode fazer o mesmo com outro homem na mesma proporção, ele não pode fazer isso, ele tem mais dificuldade, agora com uma mulher fica mais possível", afirma Sérgio.
Codependência emocional
O psiquiatra Wordney Carvalho Camargo argumenta ainda que existem casos de feminicídio motivados por pessoas que têm transtornos psiquiátricos, como o ciúme patológico “embora seja egocêntrico, ele é muito inseguro, então ele tem uma tendência a desconfiar da pessoa que está do lado dele”.
Além disso, o psiquiatra explica que há o relacionamento de codependência emocional. “Existe sempre um indivíduo que tem um relacionamento disfuncional, que geralmente ou ele é um dependente químico, ou ele é um indivíduo que tenta impor suas vontades pela violência, e a outra pessoa do relacionamento se vê numa situação na qual tem que modificar a sua forma de viver para evitar desencadear no outro determinados comportamentos. Então, se meu marido é violento, eu vou tentar deixar de fazer tudo aquilo que eu penso que pode torná-lo violento, então, eu começo a viver em função de não provocá-lo”.
Psiquiatra Wordney Carvalho Camargo(E) e psicólogo Sérgio Baggio(D) falam sobre as motivações e as consequências do feminicídio. (Foto: Divulgação TJ/TO)O impacto nos órfãos de feminicídio
O feminicídio abre uma ferida difícil de cicatrizar naqueles que ficam, principalmente nas pessoas mais próximas, que são os filhos (as), que estão ligados afetivamente em uma relação de proteção, suporte. São considerados sobreviventes, como explica o médico, “são as pessoas que ficam e elas têm um misto de sentimentos, tem sentimento de culpa, de raiva, muita angústia, sentimento de incerteza”, observa Camargo.
E esses sobreviventes, órfãos do feminicídio, reagem de forma diferente à perda e ao luto. Alguns se questionam e sentem culpa e outros procuram ajuda, como afirma o psiquiatra. "Existem peculiaridades individuais, então, existem pessoas que, em determinado momento, param e deixam de caminhar e têm outras que buscam solucionar o problema, como se fazer justiça pelo crime", complementa o psiquiatra.
E para os que buscam a reparação do crime, é preciso reconhecer que o processo tem um rito e pode demorar. Neste tempo, podem surgir sentimentos de angústia e ansiedade até o julgamento, por exemplo. No entanto, o psiquiatra ressalta que, quando o processo judicial se completa, “seja da forma que a pessoa espera ou não, com a condenação ou não, essas pessoas podem encarar esse desfecho como um fechamento também de um tempo, de um contexto, e que ele precisa voltar a ter a vida dele novamente e que deve dar aquela etapa como concluída". Já os que não conseguem fechar o ciclo, é preciso buscar mecanismos de apoio e até ajuda profissional.
Diante de situações dolorosas, como o feminicídio, o psiquiatra alerta que é preciso acolher e não julgar, e nem tratar diferente os que ficam. “Se eu encontro um filho de uma mulher que foi vítima de feminicídio, eu posso me relacionar com essa pessoa, acolhê-la sem necessariamente falar sobre o feminicídio, sobre o que aconteceu, eu posso simplesmente agir com naturalidade, como antes. Muitas vezes a pessoa quer isso, ela quer ter a vida dela de volta, ela quer não ter que falar sobre isso”. (Com informações do TJ/TO)