Interpretar o espírito do tempo é tentar jogar o pensamento para um horizonte mais distante daquela nuvem que as pessoas enxergam à frente do nariz. É procurar escanear as visões de todos os lados sobre o clima ambiental. E tentar aspirar o cheiro do momento. Tarefa difícil, que exige mais que o uso de boas condições fisiológicas. Principalmente quando se busca entender o que se passa na vida de um país. Repito: barreira quase intransponível para quem se aventura no terreno da análise política.
Arrisco-me.
Começo com a percepção de que o país está contaminado pelo vírus da mesmice. Imaginávamos que a esperança, mais uma vez vencendo o medo, oxigenaria o ânimo nacional. Que a maioria da população estaria motivada a percorrer novas trilhas, subir novas montanhas, ultrapassar encruzilhadas. E acenar um adeus às desventuras do passado recente.
O mandatário-mor foi abraçado pelos ventos da esperança, mesmo aqueles com ares de ventania já ocorrida e experimentada. A imagem que a sociedade tinha é que Luiz Inácio daria um salto extraordinário no trampolim de nossas cotidianas ambições. Algo que pudesse conter a sangria desatada dos tempos perplexos do capitão Jair Bolsonaro. Aquele que tentou dar uma virada de mesa, mas capengou. Não contou com os trunfos no baralho das forças que vislumbrava conquistar.
Percebo que o país continua dividido, com crateras se abrindo, aqui e ali, graças às inundações verbais e atitudinais de sua Excelência, o chefe de Estado e comandante do governo. A biruta se move na direção de uma esquerda ideológica, eivada de matiz estatizante e de pinceladas intervencionistas na matriz administrativa. A recente substituição do presidente da Petrobras é mais um sinal da tendência de volta a um passado, sempre lembrado pelo refrão do “nós e eles”.
Sente-se no ar o cheiro de pólvora, guardado nos tonéis do petismo, onde grupos de comando e cúpulas azeitadas pelo ardor socialista teimam em ditar sua cartilha. O cheiro de pólvora queimada inunda, sim, o meio ambiente, sob a sombra de resgate de velhos empreendimentos, como a expansão de refinarias de triste memória, construção de estaleiros, expansão das fronteiras do óleo e gás, esticamento das dobras de PACs e projetos focados nas margens da pirâmide social.
O sentimento é de alargamento do território da dor e da amargura, que se faz presente na cor purpúrea da tragédia que devasta um Estado, a 5ª economia do país, forte e cheio de tradições de luta e brasilidade. Ali, no sul do mapa do Brasil, contempla-se uma paisagem recortada de rios, lagos e lagoas, agora sob as águas devastadoras que levam, na correnteza, bens e frutos de vidas inteiras.
Como um cidadão de mais de 60 anos terá motivação para recomeçar sua vida e a de sua família, após perder todo o seu patrimônio? Mais de 500 mil pessoas sob o desconforto dos despejos e saídas atropeladas dos lares. Uma bebê gêmea, que desaparece nas águas e é confundida por uma menininha, em um barco salva-vidas, com uma boneca. Triste.
O país parece correr à deriva. Sem rumo nem prumo. O Judiciário adentra outros habitats, interferindo na afamada tríade dos Poderes que o barão de Montesquieu nos legou. A autonomia, a harmonia e a independência dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) sofrem abalos. Os comandos dos Poderes viajam para o exterior para debater sobre o Brasil. Teriam nações estrangeiras maior legitimidade que os nossos trópicos para sediar foros brasileiros? E será que tais eventos no exterior puxam investidores para o país? Fica, aqui, a dúvida.
O palanque de 2026, pelo andar da carruagem, começa a ser montado. Os aspirantes à corrida presidencial abrem a arena da disputa com vozes e gritos já conhecidos. Pesquisas sinalizam o a temperatura ambiental de hoje. Lula, segundo a Quaest, não seria a melhor opção para 2026. Apontamento feito pela maioria dos brasileiros. Bolsonaro está impedido de concorrer por decisão da Justiça. E sabem quem seria sua “herdeira” eleitoral? Sua esposa, dona Michelle. Brasil para todos os gostos. E gastos. E de todas as extravagâncias.
Frustração se junta à perplexidade. Insegurança traz o medo e faz baixar a angústia. Um olho para a direita, outro para a esquerda. Os olhos para o centro se cruzam, aqui e ali. Sensação de que estamos diante do dilema: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.
O espírito do nosso tempo circunda por todos os lados, tentando encontrar um vão onde possa abrigar seus temores e destemores.
*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.