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Meio Ambiente

Enquanto para muitos o dia está iniciando, o horário das sete da manhã é o começo do fim da jornada para Gregório Beltrão. Aos 84 anos de vida e mais de cinco décadas de ofício de atravessador de carregamentos de açaí in natura em Belém, ele sentado observa o movimento enquanto um dos filhos faz o último carregamento de um paneiro para uma saca. “Hoje, felizmente, vendi tudo e não perdi nada. Com esse calor, se passa dessa hora, o açaí vai secando e aí não presta mais, ninguém compra e tenho que jogar fora. Perde mesmo”, comenta.

Com o conhecimento de quem pode comparar o antes e depois de uma vida vivida na Feira do Açaí, tradicional ponto de escoamento da produção do fruto para a capital paraense, na área do complexo da Feira do Ver-o-Peso, Gregório garante que a temperatura está cada vez mais alta. “Quem produz e vende pra mim aqui já diz que a safra às vezes vem mais rala, menor. Aí tu já tens o primeiro ponto. Depois, é isso: o açaí deteriora muito rápido e com essa quentura, mais ainda. Se não vender logo, perde mesmo e desperdiça. Essa hora, por exemplo, era de boa… mas hoje, veja como está, mesmo sem sol”, lamenta, enxugando o rosto com suor, mesmo com o tempo nublado de uma manhã do chamado “inverno amazônico”, período em que as chuvas são mais intensas e frequentes.

Foto: Marcio Nagano

A constatação da sabedoria popular é o que a ciência também vem alertando há décadas. A temperatura do planeta está aumentando. Em 2024, o mundo viveu o ano mais quente já registrado. Preocupado com o tema enquanto pesquisador e, principalmente, morador de Belém, Júlio Cézar Patrício, se debruçou no tema ao longo dos últimos anos para analisar o registro de temperatura máxima fornecida pelo Inmet (sigla). O artigo, publicado este ano, mostra que a temperatura máxima em Belém na década de 1970, na média dos anos, foi de 31,87°C, enquanto a média da década de 2020, considerando até 2023, é de 33,83°C, resultando num aumento de 1,96°C.

 

O cálculo serve para mostrar o aumento das temperaturas máximas registradas pelo Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) em Belém. É um número que lembra - embora seja diferente - o limite de 1,5°C estabelecido pelo Acordo de Paris, documento firmado durante a COP 21, em 2015.

Esse limite foi definido com base nos relatórios elaborados pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, que significa Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). No entanto, esse aumento é na média da temperatura, que considera o cálculo entre a máxima e a mínima. Em 2023, a temperatura média mundial foi estimada em 1,52°C maior do que a média observada entre 1850–1900. Conforme registrado no site da Organização das Nações Unidas (ONU), para evitar os piores impactos das alterações climáticas e preservar um planeta habitável, o aquecimento global precisa ser limitado tanto quanto possível e com urgência.

Para Julio Patrício, doutor em desenvolvimento socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor no Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa), a cidade precisa resgatar maior planejamento para a expansão, sobretudo num momento em que a capital está tão evidência por conta da realização da COP 30 em novembro.

  Foto: Marcio Nagano

Apesar do “título” de cidade das mangueiras, Belém é a penúltima capital brasileira em nível de arborização. O levantamento é antigo, do IBGE de 2010, e não foi atualizado, mas o cenário não foi alterado e algumas áreas verdes foram reduzidas com a duplicação ou ampliação de avenidas. “Essa é a minha decepção. Se diz assim, que Belém é a cidade das mangueiras, a capital da Amazônia. A gente vai criando uma imagem na cabeça que não é a verdadeira. Belém é a capital com menor índice de arborização do país. E isso lá atrás, agora pode ser que esteja pior, pois não teve uma ação nesse sentido, pelo contrário, aumentou a urbanização”, avalia Patrício.

Também no período entre 1970 e 2020, a população de Belém aumentou quase 40%, saindo de cerca de 930 mil habitantes para os atuais 1,3 milhão, de acordo com dados do IBGE. Julio Patrício menciona no artigo um relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém pelo então intendente Antônio Lemos, num distante ano de 1902. No documento, o então gestor municipal, sempre lembrado por obras urbanas que são vistas até hoje, comenta em vários trechos sobre a importância da arborização da cidade. “Nossos jardins urbanos tornaram-se desde logo objeto dos mais atentos cuidados. Em virtude do plano administrativo por mim adotado, estes jardins serão, daqui a poucos anos, magníficos parques, prestando aos habitantes da cidade um grato refrigério, mesmo nas horas mais duras do dia”, diz o texto.

 

Para o pesquisador, a ausência de políticas públicas nessa área, entre outras, levou ao atual estágio de baixa arborização de Belém, que não acompanhou o processo de aumento da população e de alta urbanização e construção civil. “Tudo bem fazer projeto de urbanização, nós queremos a modernização da cidade. Mas quando você faz um projeto de uma construção, tem que estar ao mesmo tempo plantando árvores, considerar o todo, os canais da cidade, mas se faz de uma forma sem planejamento”, avalia.

"E esse aumento da população muitas vezes aumenta a pressão na franja, na periferia, que são as áreas com piores condições de saneamento e arborização. O Plano Diretor de Belém é de 2008, e não foi atualizado. Ou seja, vai completar 20 anos que não se pensa na cidade de forma planejada. A gente observa que não se respeita o estatuto da cidade”, aponta.

Meteorologista explica causas e consequências do aumento da temperatura

Para o pesquisador Everaldo Souza, doutor em meteorologia e professor na Universidade Federal do Pará (UFPA), são muitos fatores que contribuem para a escalada da temperatura. “Esse aumento é uma conjunção de fatores locais e regionais. Tem a ver com a urbanização, a degradação ambiental, isso tem um efeito direto. Mas, também, por outros mecanismos globais, inclusive o próprio aquecimento global, as mudanças climáticas que estão exacerbando esse aquecimento e não só da temperatura, como também eventos extremos de chuvas e secas”, explica.

Everaldo detalha como uma temperatura mais alta ocasiona eventos extremos mais frequentes, como fortes chuvas. “Temos um número quantitativo na ciência para isso: a cada aumento de 1 grau, a atmosfera aumenta a capacidade de reter vapor de água em 7%. Isso significa um planeta mais quente, uma atmosfera mais quente e com mais capacidade de reter vapor d'água. Essa água fica então disponível para as nuvens de tempestade e esse é um fator que explica os extremos”, comenta.

Particularmente em Belém, Everaldo concorda com os pontos destacados por Julio Cezar em seu artigo: a baixa arborização da cidade é um dos fatores de aumento da temperatura, associado com o crescimento populacional e de urbanização com construção civil e aumento da frota de veículos, que não é acompanhada com um planejamento urbano que inclua plantio sistemático de árvores, especialmente nas periferias da cidade.

  Foto: Marcio Nagano

Como relaciona Everaldo, essa é a escala global. Porém, o efeito local do aumento da temperatura é facilmente percebido pela população. “Se você pegar um termômetro e for para dentro do Bosque Rodrigues Alves (área na cidade com densa arborização), a temperatura lá vai estar a 27º. Se você pegar esse mesmo termômetro e lá para Doca (Avenida Visconde de Souza Franco), que é só asfalto, essa temperatura vai dar 30º, no mínimo”, exemplifica.

Segundo ele, essa diferença pode ser explicada pelo chamado balanço de energia. “O balanço de energia depende da cobertura de superfície. Se é floresta, cidade, pastagem, asfalto. Se é uma região que tem vegetação, o balanço de energia vai ter partição em dois fluxos, fluxo de calor latente, fluxo de calor sensível. Se é uma floresta, eu tenho muito mais fluxo de calor latente, com mais evaporação. Se eu não tenho cobertura, o fluxo calor latente é muito baixo e o fluxo calor sensível é bem maior. E esse é o calor sensível que esquenta a atmosfera. No caso de Belém, é um efeito direto da urbanização, de degradação, de retirada da cobertura vegetal. Então, uma região que nos últimos 50 anos você teve essa urbanização e redução da arborização, explica facilmente esse aquecimento local”, detalha Everaldo.

“O ato de modificar a cobertura de superfície do solo traz um efeito direto. A árvore, a floresta, é importante como mitigação das mudanças climáticas. Porque é a primeira medida para conter aquecimento. Quando se usa a expressão de soluções baseadas na natureza, é isso também: parques, florestas, bosques, praças”, aponta Everaldo.

Calor impacta trabalho e causa prejuízo - Moradora do bairro da Marambaia, há dez anos, Maria do Carmo, de 46 anos, atravessa boa parte da cidade todos os dias para vender limão no Ver-o-Peso. Como trabalhadora, sente os efeitos do calor. “Sem dúvida aumentou. Eu trabalho de madrugada, chego às 3 da manhã e só saio depois de meio-dia. Quando comecei, era a hora que dava calor e a gente não aguentava aqui, com essa cobertura e a quentura que vem da rua. Mas, de uns anos pra cá, a gente sente a quentura cada vez mais cedo e logo fica suando”, diz. Ela também nota que o prejuízo com o produto que sustenta a família também tem aumentado. “Claro que isso varia muito com a safra, com a época. Mas, tem período assim quente que não dura muito e ele já queima, fica com a casca branca e a gente não vende mais, tem que jogar fora”, comenta Maria do Carmo.

  Foto: Marcio Nagano

Para quem trabalha com produtos que vêm de fora do Estado, os prejuízos são maiores. É o caso de Jailson Farias, de 42 anos, 25 deles trabalhando na banca que vende tomate. “Ele vem de Santa Catarina, que é uma região mais fria. Vem num caminhão refrigerado, com todo cuidado. Mas é só tirar e colocar aqui que pronto, o tomate começa a suar. Chega de tarde, já amoleceu e muitas vezes nem dura de um dia para o outro. É perecível e perde rápido, claro, mas de um tempo pra cá a gente nota que perde com mais frequência e até compra uma quantidade menor”, comenta Jaílson.

Na sua banca, que fica atrás do conhecido Mercado de Ferro, um dos cartões postais de Belém, há alguns meses ele passou a usar um ventilador, mesmo tendo há poucos metros a baía do Guajará, que traz ventos nessa área da cidade. “Aqui venta, mas tem sido pouco e não dá conta. A gente já precisa do ventilador e fica na dúvida se coloca o vento pra gente ou pro nosso produto. Eu mesmo já trago roupa a mais pra trocar de camisa, porque algumas horas aqui e ela já está molhada de suor, mesmo a gente parado”, destaca o feirante.

Desigualdade - O pesquisador Everaldo Souza lembra que os efeitos do aquecimento impactam de maneira desigual a população em diferentes formas, especialmente os trabalhadores, tanto no ambiente durante o dia como nos momentos de lazer e descanso em casa. “Em Belém, no centro, temos muitas árvores e muitas praças. Mas, na periferia, não. E é justamente nessas áreas que as pessoas têm temperaturas mais altas que as famílias não têm como ter um ar condicionado, por exemplo, só para citar um item de conforto”, comenta Everaldo.

Para mudar o cenário, o meteorologista lembra que as ações precisam ser urgentes e que, mesmo que imediatas, vai levar tempo para sentir o efeito. “Num cenário global, o aquecimento vem das emissões antrópicas, que são causadas pelo homem, com os gases de efeito estufa. Esses gases têm um tempo de ciclo de vida na atmosfera, que é da ordem de 100 anos. Então, esse efeito de calor que a gente está sentindo é de longo prazo. Se a gente parar de emitir hoje, só os nossos bisnetos vão ser beneficiados. Nós estamos lascados… a gente vai enfrentar isso para toda a nossa geração. Toda a nossa geração está comprometida, mas é urgente fazer algo para as gerações futuras ao menos”, aponta.

Um estudo publicado em 2023 pela Carbonplan e The Washington Post alertou o mundo sobre os cenários possíveis de aquecimento para 2050, e colocou Belém em um cenário como a segunda cidade do mundo com mais dias de calor extremo em 2050. “Eu digo mais: em 2100, é possível que a humanidade esteja ainda sofrendo os impactos do que estamos emitindo hoje”, lamenta. Everaldo comenta ainda que, pelo atual contexto político global, os cenários não são positivos. “O IPCC traz alguns cenários de futuro, que é um mais moderado, outro que é o meio do caminho, e um mais extremo. Eu tenho dito nas discussões da comunidade científica que temos de esquecer os cenários intermediários e que devemos ter um caminho para os mais extremos. A eleição do Donald Trump nos Estados Unidos deflagrou esse cenário mais pessimista”, analisa.

Nova gestão tem meta de plantar 10 mil mudas na capital

Em seu plano de governo enquanto candidato, o prefeito Igor Normando, que assumiu a gestão em janeiro deste ano, menciona a baixa arborização de Belém. Para enfrentar o problema, cita o “Programa Cidade Verde”, que promete uma “intervenção paisagística, em parceria com o governo do estado, para tornar Belém uma das cidades no país com mais área verde/habitante, implementando ações de arborização por toda cidade e condicionando o asfaltamento de vias ao plantio de árvores ao longo do curso dessas vias”, diz o texto do documento, disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

  Foto: Marcio Nagano

Para operacionalizar esse desafio, a engenheira ambiental Juliana Nobre é a responsável pela Secretaria de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. Após doze anos à frente da secretaria municipal de Barcarena, distante cerca de 50 quilômetros de Belém, Juliana Nobre compreende o tamanho do desafio. “Sabemos que não é culpa nossa, que acabamos de assumir. Mas, ao assumir a gestão, assumimos essa responsabilidade também”, disse.

Segundo ela, o planejamento para execução do programa que pretende aumentar os indicadores de arborização da cidade já iniciou e tem metas ousadas. “Nesse primeiro ano, a gente quer plantar pelo menos 10 mil mudas na cidade. Temos um acordo de cooperação técnica com a UFRA (Universidade Federal Rural da Amazônia) e vamos começar nos bairros do Reduto e Fátima, com arborização nessas áreas”, informa a secretária, complementando que o total ao longo dos próximos anos é chegar a 25 quilômetros de vias com arborização.

“Com isso, a nossa equipe fez um cálculo que a gente vai conseguir absorver até 72 toneladas de carbono por ano, já com esse primeiro levantamento, e contribuir para uma redução de até 0,18% na temperatura. É um projeto que tem um tempo, é de médio e longo prazo (para as mudas crescerem), mas já estamos iniciando”, afirma.

Além das vias, a prefeitura planeja trabalhar em conjunto com outros órgãos e empresas para expandir a ação em escolas, órgãos públicos e mais praças que possuem baixa arborização e empresas. “Local para plantar tem, a gente só precisa realmente tá organizado fazer um plantio planejado, com as espécies corretas, regionais e nativas, que não requerem tanta manutenção e que consigam se adaptar a essa mudança do clima, que possam cumprir com esse conforto térmico, com a ideia de microclima”, aponta.

De acordo com a secretária, as equipes de gestão da prefeitura também estão iniciando o cronograma de audiências públicas para atualizar o Plano Diretor de Belém, cuja última versão é de 2008. Ela comenta que a atual legislação municipal define que, para cada árvore retirada, uma nova deve ser plantada. O desafio de aumentar a arborização fica ainda maior quando consideradas as obras em andamento que são relacionadas com a realização da COP 30, em novembro.

“As obras com responsabilidade da prefeitura são menores se comparadas com as feitas pelo Estado. Por essa questão da compensação do plantio para retirada, a equipe técnica trata com as empresas, buscando abordar isso já nos processos de licenciamento”, disse. Por outro lado, a secretária acredita que a visibilidade que a capital paraense está recebendo com o evento deve facilitar a chegada de investimentos para as ações voltadas para a arborização em Belém. “Tenho certeza de que a gente vai conseguir muitas parcerias não só para arborização, mas também de educação ambiental, transição energética e o que mais a gente puder implementar de ações que possam diminuir essas emissões ligadas ao aquecimento global. A gente precisa correr, precisa começar a fazer agora”, avalia.

Obras - Por conta da realização da COP 30, o Governo do Estado contabiliza cerca de 30 obras nas áreas de mobilidade, saneamento, desenvolvimento urbano, turismo e conectividade. Entre elas está o prolongamento e duplicação da Rua da Marinha, que terá uma extensão de 3,5 quilômetros. Os serviços são executados por meio da Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop).

  Foto: Marcio Nagano

De acordo com o Governo do Estado, a via terá duas pistas com sentido duplo, onde cada pista será composta por três faixas de rolamento, ciclofaixa e passeio com acessibilidade. Segundo a gestão estadual, o projeto inclui transplante de espécies de árvores da área atual para os canteiros centrais, como parte das condicionantes para o licenciamento ambiental.

Em novembro do ano passado, a justiça chegou a determinar a suspensão das obras, pela falta de licença ambiental emitida pelo município, que tinha como prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL), que não foi reeleito e perdeu a disputa para Igor Normando (MDB), aliado do governador Helder Barbalho. A obra corta o Parque Ecológico Gunnar Vingren (PEMB), que possui 44 hectares. (AmazôniaVox)