Seria possível que um anime juvenil, popularizado nas tardes da extinta Rede Manchete, encerrasse em seu interior simbólico uma refinada crítica às engrenagens do poder e da moral social? A resposta é afirmativa, desde que a leitura do enredo seja feita com as ferramentas da Análise Arqueogenealógica do Discurso. Foi justamente o que se evidenciou na leitura do embate dialógico entre os cavaleiros de ouro Máscara da Morte e Mestre Ancião, no episódio 39 de “Os Cavaleiros do Zodíaco”. Tal cena, embora breve, configura uma arena onde se entrechocam duas formações discursivas antagônicas: uma de matriz conservadora, sustentada por uma episteme moralista, e outra de orientação revolucionária, fundamentada em uma episteme relativista.
O que à primeira vista poderia ser reduzido à clássica luta entre o bem e o mal ganha complexidade quando se observa que o verdadeiro confronto não se dá nas técnicas de batalha, mas nas estratégias argumentativas que as personagens mobilizam. Enquanto Mestre Ancião, figura do velho sábio e guardião da ordem tradicional, ancora sua fala na estabilidade dos valores e na intransigência do juízo moral, Máscara da Morte professa uma concepção relativista da justiça, fundada na reconfiguração histórica dos vencedores e dos vencidos. Trata-se, portanto, de um embate entre regimes de verdade que disputam hegemonia no discurso social.
Há uma lição implícita, e talvez incômoda, nessa estrutura narrativa: a de que os discursos mais amplamente aceitos são, muitas vezes, aqueles que melhor performam a moral coletiva, ainda que não resistam a uma análise crítica mais aprofundada. O cavaleiro de Câncer, ao afirmar que “o errado pode se tornar o certo”, não profere um absurdo ético, mas evidencia um dado empírico da história humana. De fato, inúmeras atrocidades do passado foram revestidas de legitimidade por quem detinha o poder de narrar os acontecimentos. O relativismo moral, longe de ser uma fuga da ética, constitui-se como uma denúncia da sua contaminação pelas forças que operam no circuito coletivo de saber.
Por outro lado, a figura de Mestre Ancião representa a encarnação do arquétipo moralista que preside o discurso pedagógico da tradição. Sua fala opera como um repositório de verdades fixas, um lastro que ancora o sujeito à previsibilidade normativa da moral. Contudo, como todo discurso hegemônico, sua força reside não apenas na veracidade de seus conteúdos, mas na aceitação tácita de seus fundamentos por parte da coletividade. Nesse sentido, a moral defendida pelo velho cavaleiro não é apenas um sistema ético: é um artefato discursivo, disciplinador e regulador dos sentidos possíveis de serem ditos, pensados e vividos.
Ao enunciar que “a injustiça nunca se torna justiça”, Mestre Ancião restabelece a lógica binária que orienta o discurso oficial da moralidade, mas ignora que essa mesma lógica foi historicamente construída e é, por isso, passível de transformação. Mais do que um opositor do mal, ele é o guardião da episteme dominante, aquela que ordena os enunciados a partir da crença na permanência dos valores. Seu poder não deriva apenas da experiência ou da idade, mas do fato de estar investido da legitimidade discursiva que o anime, por sua perspectiva narrativa, também confirma.
No entanto, a grande ironia do episódio reside no fato de que, ao mesmo tempo em que Máscara da Morte é retratado como vilão, ele profere uma das mais sofisticadas reflexões do seriado, ainda que envolta em cinismo. Seu discurso relativista, por mais desconcertante que pareça, toca o nervo exposto da moral social: a constatação de que os juízos éticos são volúveis, moldados por relações de força e constantemente reescritos pelos vencedores. Em uma sociedade que se pretende plural, democrática e sensível à alteridade, talvez esse tipo de discurso, perturbador, mas intelectualmente honesto, mereça mais escuta do que desprezo.
É nesse ponto que a filosofia de Nietzsche insinua-se com vigor. Ao satirizar a moral das ovelhas diante das águias, o pensador alemão desmascara a hipocrisia do idealismo ético que se proclama absoluto. A moral, como o discurso, é uma tecnologia de poder, não um reflexo eterno do bem. E, se assim é, talvez o verdadeiro herói não seja aquele que repete as fórmulas do senso comum, mas quem ousa questionar os alicerces das verdades instituídas, mesmo que isso implique ser tomado por vilão.
Portanto, o episódio 39 de “Os Cavaleiros do Zodíaco” confronta-nos com uma inquietação filosófica: quem define o bem e o mal? O que legitima uma moral? E que custo tem a obediência cega à ordem estabelecida? Através da lente da Análise do Discurso, esse breve diálogo animado revela-se um potente instrumento de reflexão crítica sobre os modos como o saber, o poder e a verdade entrelaçam-se. Não se trata de defender um niilismo ético, mas de compreender que toda moral é também um discurso, e, como tal, está sujeita às contingências da história.
*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.