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Cultura

Foto: Lucas Machado/Anunciação Cultura

Foto: Lucas Machado/Anunciação Cultura

Aos 79 anos, o General das Congadas de Ouvidor, Ozark Rosa de Almeida, do Terno de Congo Nossa Senhora do Rosário, segue batendo o mesmo tambor que pegou pela primeira vez aos 9 anos de idade. Silésio Teixeira da Silva, presidente da Irmandade de Catalão, herdou do avô mais do que um terno, herdou um legado de 149 anos de história viva. Fabrício Alves, capitão do Catupé Cacunda Vermelho e Branco de Três Ranchos, nasceu em junho e em julho já estava imerso na festa. Esses são os rostos da Congada goiana: homens e mulheres que não escolheram essa tradição, nasceram dentro dela.

No dia 8 de novembro, Catalão, reconhecida como a Capital da Congada do Estado de Goiás, se transforma no epicentro dessa manifestação cultural que atravessa gerações. O Segundo Encontro Estadual de Congadas do Estado de Goiás, com realização da Anunciação Cultura e patrocínio da CMOC Brasil através da Lei Rouanet de Incentivo a Projetos Culturais, promete ser um mergulho profundo nas raízes afro-brasileiras que moldaram a identidade do sudeste goiano.

Mais que batucadas: uma história de luta e fé

A Congada é patrimônio cultural vivo que atravessa gerações, carregando a fé em Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Fabrício Alves explica as raízes dessa manifestação. "A Congada é uma manifestação cultural, religiosa, de matriz africana. Ela já acontecia em África, no país do Congo, onde os povos tiravam um dia no ano para desfilar seus grupos para o rei e a rainha do Congo ver. Vindo para o Brasil, os negros que foram escravizados associaram a festa aos festejos do Rosário. A primeira irmandade do Brasil que se tem registro é a de Ouro Preto".

O que começou como resistência, quando os negros não podiam adentrar as igrejas e faziam seus festejos do lado de fora, transformou-se em tradição que une 26 ternos só em Catalão.

"Negro no tronco apanhava, negro no tronco sofria, mas nunca perdeu sua fé em Deus e a Virgem Maria", canta Silésio, repetindo versos que ecoam há mais de um século. Para ele, ser capitão não é escolha: "É dom. Nossa Senhora escolhe. Meu avô foi capitão, meu pai não foi, mas eu fui. É legado familiar".

Foto:  Lucas Machado/Anunciação Cultura

Congadeiros: artistas do impossível

Os ternos são compostos por um general ou comandante, três capitães responsáveis pela organização, um guarda ou fiscal, que é o zelador dos instrumentos e das crianças nas ruas, os alferes, que são soldados que puxam as filas, caixeiros de frente, que fazem a evolução na porta da Igreja do Rosário e os soldados que completam o terno. Os congos e ternos geralmente têm entre 40 e 100 componentes.

E poucos sabem o que significa colocar um terno na rua. Cada caixa é artesanal, cada farda é costurada à mão, cada bandeira carrega símbolos que atravessaram o Atlântico. "As pessoas veem o terno bonito dançando, mas não sabem a dificuldade. O capitão chega em casa cansado do trabalho e ainda tem que arrumar as coisas do terno. Mas quando você vê aquele terno na rua, a emoção compensa tudo", revela Silésio.

Se fosse para definir a Congada em uma palavra, ele não hesitaria. "Luta. Porque a Congada chegar onde ela chegou é muita luta. O que o nosso povo sofreu para estar aqui hoje foi muita resistência. Para você pôr um terno na rua é luta a todo instante, a todo momento".

Ozark, que começou a bater caixas para cumprir uma promessa de sua mãe devota, hoje é Presidente da Irmandade e observa com admiração os mais jovens: "Ensinamos que quando vestem a farda para louvar Nossa Senhora, não são pessoas quaisquer, são escolhidos por ela".

A nova geração que garante o futuro

 Foto:  Lucas Machado/Anunciação Cultura

Se antigamente a Congada era território exclusivo de negros adultos, hoje as cores se misturaram e as crianças dominam os ternos. "Quando você vê o terno cheio de criança, você sabe que o legado não vai morrer", emociona-se Silésio. Fabrício complementa. "A Congada é como uma bananeira. Ela cresce, dá fruto, morre, mas do lado já nasce outra. Esse é nosso ciclo, infinito".

Essa consciência de continuidade já chegou às salas de aula. Nos dias 29 e 30 de setembro, as cidades de Ouvidor e Três Ranchos foram palco de atividades artístico-pedagógicas que integraram alunos, docentes e comunidades locais ao universo das congadas. As ações, que contaram com a presença de Luciano Gentile, consultor da Unesco no Brasil, fizeram parte do pré-lançamento do Segundo Encontro Estadual. Durante as oficinas, as crianças puderam conhecer de perto instrumentos, trajes, cantos e danças, em uma imersão cultural que prepara o terreno para o grande evento de novembro.

O capitão de Três Ranchos, que comanda o grupo desde muito jovem, usa a tecnologia como aliada. "Hoje uma pessoa que nunca viu Congada pode conhecer pela internet. Recebemos convites de todo o Brasil. Transformamos a modernidade em ferramenta para promover a tradição", destaca Fabrício.

Um encontro que faz história

O Segundo Encontro Cultural das Congadas promete superar a primeira edição. Com cortejos pelas ruas históricas de Catalão, gastronomia típica, apresentações de múltiplos ternos e atividades abertas ao público, o evento coloca os congadeiros no centro do palco, onde sempre deveriam estar. "O que vai ficar na história é esse encontro. Porque aqui em Catalão a própria Congada já se divulga sozinha. A população abraça, vive e respira essa tradição”, ", garante Silésio.

Para o General Ozark, o sentimento é de "admiração e responsabilidade". Fabrício resume em uma palavra o que move todos esses guerreiros culturais: "Fé. Porque quem tem fé tem tudo. Quem tem fé tem amor, segue tradições e vence as batalhas do dia a dia". (Kasane/AI)