O debate sobre a pejotização, a contratação de profissionais mediante pessoa jurídica, tem dominado o cenário jurídico e político nacional, sobretudo, após o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a repercussão geral no Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.532.603/PR. Parte da doutrina sustenta que tal prática seria inconstitucional por representar fraude trabalhista e esvaziamento de direitos sociais. No entanto, uma leitura sistemática e atualizada da Constituição revela que a pejotização, quando pautada na autonomia da vontade e na ausência de subordinação típica, é plenamente constitucional e compatível com a ordem econômica e social vigente.
A Constituição de 1988 consagra, simultaneamente, o valor social do trabalho e a livre iniciativa (art. 1º, IV), concebendo ambos como fundamentos da República e vetores que se complementam. Não há hierarquia entre eles, mas harmonia dialética. O Estado brasileiro é social, mas não é estatizante. A ordem econômica (art. 170) baseia-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o objetivo de assegurar existência digna e justiça social. Reduzir o fenômeno da pejotização à ideia de fraude é negar a própria pluralidade de formas contratuais admitidas pelo texto constitucional. O princípio da liberdade de contratar, derivado da autonomia privada (art. 5º, II e XXII), confere às partes o direito de escolher a forma jurídica mais adequada à natureza da prestação de serviços, desde que observados os limites da boa-fé e da função social do contrato.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1943, foi concebida em um contexto industrial fordista, de subordinação rígida, jornada fixa e vínculo hierárquico. O mundo do trabalho do século XXI, porém, é fluido, digital, especializado e interdependente, marcado por relações de natureza técnica e intelectual que escapam ao modelo tradicional empregado-empregador. A pejotização, nesse contexto, não é subterfúgio, mas instrumento jurídico de adequação às novas dinâmicas produtivas. Profissionais de saúde, tecnologia, comunicação e consultoria, por exemplo, atuam como autônomos organizados em pessoas jurídicas, não por coação, mas por conveniência econômica, tributária e organizacional. Criminalizar tais arranjos é o mesmo que negar a liberdade econômica consagrada na Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), que reafirma o direito de exercer atividades profissionais de forma empreendedora, sem presunção de vínculo empregatício.
O artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal é categórico ao assegurar a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Essa liberdade deve irradiar também sobre as relações de trabalho, permitindo que o Estado não imponha modelos contratuais uniformes, mas apenas coíba abusos e fraudes comprovadas. Não é o simples uso de pessoa jurídica que caracteriza ilicitude. O elemento definidor é a presença dos requisitos do art. 3º da CLT, subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade. Se tais elementos não se configuram, a contratação por PJ é lícita e constitucional. A função do Judiciário, portanto, não é presumir a fraude, mas aferir, caso a caso, a efetiva autonomia da relação.
Argumenta-se que a pejotização esvazia a base de financiamento da seguridade social. Essa crítica, contudo, confunde meios e fins. O art. 195 da Constituição estabelece diversas fontes de custeio, não apenas sobre a folha de salários, mas também sobre a receita e o lucro das empresas. A ampliação de formas contratuais não representa, portanto, uma afronta à solidariedade social, mas uma mudança na estrutura de arrecadação, que deve ser acompanhada por políticas fiscais inteligentes e compatíveis com a nova economia. Punir a pejotização como inconstitucional seria, em última análise, impor retrocesso ao próprio desenvolvimento econômico e à formalização empresarial de milhões de brasileiros, que encontraram nas micro e pequenas empresas (MEIs, EPPs, SLUs) um caminho legítimo de inserção produtiva.
A Constituição de 1988 não instituiu uma “ditadura da CLT”. Instituiu, sim, um Estado Democrático de Direito que concilia valores, trabalho, livre iniciativa, solidariedade e dignidade. A pejotização, quando real e voluntária, concretiza esses valores, pois respeita a autonomia individual, promove a livre iniciativa, gera eficiência econômica e amplia oportunidades de trabalho. A inconstitucionalidade está, portanto, não na pejotização em si, mas na pejotização fraudulenta, isto é, naqueles casos em que o empregador disfarça vínculo de emprego sob roupagem empresarial para suprimir direitos. O desafio do STF é separar, com serenidade e técnica, a autonomia legítima da fraude ilegítima, sob pena de transformar o Estado Social em um Estado de tutela e atraso.
Trata-se de um movimento institucional de extrema relevância, pois recoloca o Supremo como guardião da coerência do sistema jurídico, especialmente diante da insistência de parte da Justiça do Trabalho, notadamente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em ignorar o precedente vinculante firmado em 2018, que reconheceu a legitimidade da contratação de profissionais de nível superior por meio de pessoa jurídica, desde que observados os princípios da boa-fé e da livre iniciativa. É fato que o TST tem reiteradamente afrontado a autoridade do Supremo Tribunal Federal, ao insistir em aplicar uma leitura anacrônica da CLT e requalificar como vínculo empregatício relações legítimas de natureza civil ou empresarial. Essa postura revela mais do que divergência interpretativa: representa uma resistência institucional ao avanço da jurisprudência constitucional e um apego ideológico a um modelo trabalhista ultrapassado, construído sob o paradigma do Estado paternalista da década de 1940.
Ao desconsiderar a realidade econômica e a autonomia de profissionais altamente qualificados, o TST reafirma um viés protecionista que desestimula a livre iniciativa, impede a modernização das relações contratuais e gera insegurança jurídica. O resultado é perverso: empresas relutam em contratar e profissionais perdem oportunidades, sob o medo de futuras reclassificações judiciais. O Supremo, ao intervir, não defende a precarização, mas restitui a força normativa da Constituição Federal. O art. 170 é claro ao consagrar a livre iniciativa e a valorização do trabalho como fundamentos harmônicos, e não excludentes. O que o STF agora impõe é o respeito à autonomia de quem escolhe livremente o modo de exercer sua profissão.
Outro ponto nevrálgico da discussão é o papel dos sindicatos, que, ao longo dos últimos anos, têm se posicionado frontalmente contra a pejotização, defendendo um discurso de proteção absoluta que, na prática, preserva estruturas de poder e de financiamento sindical. Em grande medida, essa resistência não nasce da defesa do trabalhador, mas da preservação de um sistema que depende da intermediação compulsória das categorias profissionais. A pejotização legítima, ao permitir contratações diretas e personalizadas, rompe o monopólio representativo e financeiro dessas entidades, o que explica o esforço retórico de associá-la, de forma indevida, à precarização. O resultado é um corporativismo travestido de proteção social, que busca manter a dependência do trabalhador ao aparato sindical. O verdadeiro interesse coletivo, no entanto, está em estimular a liberdade de escolha, o empreendedorismo individual e a pluralidade de formas contratuais, valores compatíveis com uma economia aberta e constitucionalmente livre.
A Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) foi um divisor de águas. Introduziu a figura do profissional hipersuficiente, aquele com formação superior e remuneração igual ou superior ao dobro do teto do INSS, reconhecendo-lhe plena capacidade para negociar suas condições de trabalho. Essa inovação legislativa reflete um avanço civilizatório: o reconhecimento de que nem todos os trabalhadores são hipossuficientes e de que a tutela estatal não pode ser uniforme e indiscriminada. A CLT, criada sob o manto do corporativismo getulista, teve mérito histórico, mas hoje não pode servir como instrumento de limitação da liberdade contratual. A aplicação cega de suas normas a todos os vínculos de trabalho ignora as transformações econômicas, tecnológicas e culturais do país.
O profissional hipersuficiente é a síntese do novo paradigma: autônomo, responsável e capaz de decidir, sem necessidade de tutela sindical ou estatal. O Brasil vive um paradoxo: ao mesmo tempo em que enfrenta carência crônica de bons profissionais em diversas áreas, como saúde, engenharia, tecnologia e pesquisa, o excesso de burocracia e o ambiente jurídico hostil à autonomia profissional têm levado muitos desses talentos a buscar oportunidades no exterior. A insegurança jurídica sobre modelos contratuais legítimos, como a pejotização, somada à carga tributária elevada e à falta de previsibilidade das decisões trabalhistas, cria um ambiente de desestímulo e fuga de cérebros.
Em vez de atrair e valorizar o conhecimento técnico, o sistema jurídico brasileiro ainda penaliza quem quer empreender individualmente, preferindo enquadrar o profissional liberal como subordinado, mesmo quando sua atuação é claramente autônoma. Trata-se de uma distorção grave: um país que expulsa seus talentos em nome de um protecionismo anacrônico compromete seu próprio desenvolvimento econômico e tecnológico. O Direito do Trabalho contemporâneo precisa reconhecer a pluralidade legítima de vínculos laborais, o empregado subordinado, o autônomo, o cooperado, o prestador independente e o profissional pessoa jurídica.
A pejotização legítima, quando fruto da vontade livre e informada das partes, não afronta a Constituição, mas a concretiza. O Estado deve coibir fraudes e abusos, mas não interferir nas escolhas contratuais de quem detém plena consciência jurídica e técnica de sua atividade. O verdadeiro desafio está em equilibrar proteção e liberdade: proteger o vulnerável sim, mas sem infantilizar o profissional livre, cuja independência é também expressão de dignidade e de cidadania econômica.
As profissões liberais, médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros, advogados, economistas, engenheiros, arquitetos, entre outras, por exigirem formação superior, responsabilidade técnica e capacidade civil plena, detêm grau de instrução e discernimento suficientes para escolher, com autonomia e informação, o regime jurídico de sua contratação, seja emprego celetista, prestação autônoma, sociedade profissional ou pessoa jurídica prestadora. Tal prerrogativa decorre do art. 5º, XIII, da Constituição (livre exercício profissional), da livre iniciativa e liberdade de contratar (arts. 1º, IV, e 170 da CF; arts. 421, 421-A e 422 do Código Civil) e das inovações da Lei 13.467/2017 sobre o trabalhador hipersuficiente, que reconhecem maior poder negocial a quem possui formação superior e alta remuneração. Ao Estado cumpre resguardar a boa-fé e coibir fraudes, não substituir a vontade informada do profissional liberal que legitimamente opta por se organizar e contratar como pessoa jurídica.
A audiência pública convocada pelo Ministro Gilmar Mendes marca um ponto de inflexão histórico. O Supremo Tribunal Federal retoma seu papel de guardião da Constituição e reafirma que a liberdade de contratar é um valor essencial ao Estado Democrático de Direito. A crítica é necessária e direta: a Justiça do Trabalho e os sindicatos não podem continuar agindo como se o trabalhador brasileiro fosse eternamente incapaz de decidir. É preciso abandonar o paternalismo e reconhecer que a autonomia profissional é também uma forma de emancipação.
A pejotização legítima não é um desvio, mas uma expressão contemporânea da liberdade econômica e da valorização do trabalho intelectual. O julgamento do Tema 1389 pelo STF poderá consolidar um novo paradigma: um Direito do Trabalho do século XXI, que proteja o vulnerável, mas respeite a escolha do livre; que coíba o abuso, mas garanta a liberdade; e que substitua o velho paternalismo por segurança jurídica, racionalidade e respeito à Constituição.
*Dr. Arcênio Rodrigues da Silva é mestre em Direito e sócio da Rodrigues Silva Sociedade de Advogados.

