Relatos de indígenas afirmando que o limite do cartão bancário foi utilizado sem permissão, falando de empréstimos realizados por terceiros, que tiveram que dormir na rua ou se sentiram discriminados. Essa escuta direta, dentro da Aldeia Galheiro, marcou a condução da Audiência Pública realizada na última quarta-feira, 3, que debateu, em território indígena, práticas comerciais que vêm afetando a autonomia e a dignidade do povo Krahô.
Ao levar a mesa de diálogo para dentro da comunidade, Ministério Público do Tocantins (MPTO), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO),Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO), Funai e Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais (Sepot) reforçaram que proteção de direitos indígenas não se constrói à distância; exige presença, escuta qualificada e pactuação conjunta.
O encontro teve como foco principal a revisão do termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado com comerciantes em 2011, que tratava da administração de cartões bancários dos indígenas. O documento, embora existente, não vinha sendo cumprido.
A audiência também abordou relatos de cobranças abusivas pelo frete das mercadorias, situações de discriminação, empréstimos bancários não autorizados e insegurança no transporte entre aldeias e cidade, frequentemente realizado em carrocerias sem proteção de crianças, adultos e idosos.
Indígenas, comerciantes e representantes das Prefeituras de Itacajá e Goiatins foram ouvidos, e um novo termo será construído e assinado.
“Houve mudanças tecnológicas, bancárias e sociais, e era indispensável ouvir novamente indígenas e comerciantes para atualizar o acordo e torná-lo efetivamente cumprível”, destacou o promotor de Justiça de Itacajá, Lucas Abreu.
Para ele, o compromisso não é apenas refazer um termo antigo. É redefinir parâmetros para que a relação deixe de ser desigual e passe a ser equilibrada, segura e transparente para todos os envolvidos.
O procurador da República, Álvaro Lotufo Manzano, também destacou que as leis existem, mas a aplicação precisa considerar a realidade local, o modo de vida e a dinâmica de cada povo. “Vimos que há necessidade de inclusão de outras regras e, a partir de tudo que ouvimos aqui e das sugestões, vamos elaborar uma nova minuta de um termo de compromisso para ser assinado pelos comerciantes e acompanhar a execução dessas regras”.
A juíza Luciana Costa Aglantzakis, que já acompanha a pauta há décadas, também destacou que a audiência só tem potência porque rompe o isolamento institucional e devolve o debate ao território indígena. “Esse problema não é recente, não começou hoje. Desde a década de 1990 acompanhamos os impactos dessa dinâmica. É estrutural, e justamente por isso demanda a união de todas as instituições, MP, Defensoria Pública, Justiça, Funai, Sepot e outros, em diálogo direto com a comunidade".
Foto: Marcelo de Deus/MPTO
Encontro de caciques
A audiência aconteceu dentro de um encontro anual de caciques Krahôs, que reuniu representantes das 45 aldeias existentes na região. Representante da Aldeia Galheiro, o cacique Francisco Hujnõ Krahô lembrou que a relação desigual com comerciantes não é recente e antecede sua geração. “Esse problema não começou agora. Antes de eu nascer, meu avô já enfrentava essas dificuldades com os pais dos comerciantes que estão aqui hoje. Fizemos um acordo em 2011, e, ainda assim, nada mudou”, disse.
Para ele, esse momento não pode resultar apenas em assinaturas e documentos. “Não basta escrever no papel. É preciso ver a mudança acontecendo na prática: no mercado, no caixa, na estrada, no transporte. Quero chegar na cidade e enxergar diferença”, frisou.
Comerciantes
Foto: Marcelo de Deus/MPTO
No diálogo direto com a comunidade e as instituições, os comerciantes locais também reconheceram a necessidade de ajustes nas relações de consumo. Proprietário de um comércio em Itacajá, Simão Albuquerque elogiou a realização da audiência e afirmou que a revisão do TAC deverá servir a todos
“Estamos aqui para ouvir as demandas e também para corrigir o que fazemos de forma inadequada. É uma construção dos dois lados, e nós precisamos nos adequar, assim como os indígenas têm buscado se reorganizar.”
Perda de autonomia financeira
Foto: Marcelo de Deus/MPTO
Prática consolidada na região, a entrega dos cartões bancários indígenas a comerciantes, que passam a administrar saques, pagamentos e compras, embora socialmente estabelecida, tem resultado em perda de autonomia financeira, falta de transparência na prestação de contas e dificuldade de retorno dos cartões aos titulares quando solicitado.
Por isso, segundo a promotora de Justiça de Goiatins Jenniffer Medrado, a reformulação do TAC precisa vir acompanhada de ações de formação, não apenas de restrições.
“Neste primeiro momento, é necessário manter o controle e a fiscalização, mas isso deve caminhar junto com um projeto consistente de educação financeira, para que o povo Krahô alcance independência real, não só na sua integridade pessoal, mas também na sua própria gestão civil.”
Ela também reforçou que autonomia financeira não é apenas acesso ao cartão, mas capacidade de compreender, decidir e administrar seus recursos.
No mesmo eixo, a defensora pública de Goiatins Débora da Silva Souza destacou que a raiz do problema não está apenas no transporte ou nas cobranças, mas na ausência histórica de estrutura e emancipação nas relações de consumo:
“A dificuldade não é só acesso ao dinheiro, é autonomia. Quando um projeto trabalha a educação financeira com os povos indígenas, ele não só resolve o efeito, mas trata a causa do problema: a dependência forçada".
Discriminação
Foto: Marcelo de Deus/MPTO
A audiência também trouxe à tona situações de segregação e tratamento desigual vividos pelos Krahô no acesso ao comércio e aos serviços básicos nas cidades de Itacajá e Goiatins. Relatos mencionaram filas exclusivas, caixas separados, espera do lado de fora dos estabelecimentos e atendimento diferenciado apenas pelo fato de serem indígenas.
A promotora de Justiça Jeniffer Medrado classificou a prática como inaceitável. “Quando o indígena é colocado em fila distinta, atendido do lado de fora ou submetido a procedimentos diferentes, não estamos diante de organização comercial, mas de discriminação. É uma violação de dignidade”, destacou.
O cacique Francisco Hujnõ Krahô reforçou que a desigualdade não pode continuar normalizada. “Nunca podem discriminar nosso povo. Não é favor, é respeito. Queremos tratamento digno como qualquer cidadão”.
Representante da associação indígena Me Hempej Xa, Indiarrury Krahô foi categórico ao lembrar que o ciclo econômico não é unilateral: se, de um lado, os indígenas dependem do comércio urbano, do outro o comércio e o próprio município sobrevivem graças ao consumo indígena.
“Não é só o nosso povo que precisa da cidade. A cidade também precisa da gente. O dinheiro que movimenta esses mercados é o nosso. Só que, quando termina o dia de compras, somos nós que ficamos sem transporte, sem lugar e sem acolhimento”, pontuou.
A fala rompe com a narrativa histórica de dependência única e recoloca a relação no seu eixo correto: é um vínculo econômico mútuo, mas com obrigações institucionais desiguais, porque o poder de transporte, preço, logística e permanência está nas mãos de quem vende, não de quem compra.
Casa de apoio indígena
Um ponto decisivo da audiência foi o reconhecimento de que o deslocamento forçado e sem retorno não pode mais ser naturalizado. Como lembrou o MPTO, é recorrente ver famílias, crianças e idosos indígenas dormindo nas calçadas de Itacajá por não conseguirem voltar à aldeia no mesmo dia das compras ou atendimentos.
Diante da realidade, o município confirmou o interesse em iniciar uma tratativa para viabilizar a criação de uma Casa de Apoio aos Indígenas, em Itacajá. Essa estrutura poderá ser integrada à política local de atenção aos povos originários e fiscalizada pelos órgãos presentes na audiência. (MPTO)





