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Opinião

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT. Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Não é possível ler, o artefato cultural que seja, sem lançar o objeto da leitura em um universo de relações. Isso, em boa medida, vale para ver, um dos atos mais elementares àquele cujo aparato ocular está em pleno funcionamento. Ao fechar os olhos, o mundo circunstante, apanhado pela visão, não deixa de existir porque não é visto; ao fechar a porta de casa para ir ao trabalho, o interior da casa não deixa de existir porque não é visto; ao guardar o dinheiro no banco, ou mesmo na carteira, o dinheiro não cessa sua continuidade onde foi deixado. Ora, a propriedade da memória é acionada em todos esses casos no interior dos quais a visão parece um mero ato de direcionamento da consciência. Ler, de maneira similar e distinta, em sua magnitude semântica, implica não apenas o aspecto mnemônico da cognição, pois mobiliza o âmbito externo, contexto, e interno do sujeito leitor para captar sentidos, que não devem frequentar o isolamento. 

Ler, antes de ser uma potente manifestação interpretativa da linguagem, é uma capacidade de relacionar elementos conhecidos e desconhecidos e entendê-los segundo tais propriedades depreendidas. Ler uma palavra, em um sentido restrito de decodificação, é saber juntar ordenadamente os fonemas representados (muito mal) pelas letras em duas vias, a mental e oral. Eis a simples definição de ler, já não mais empregada em manuais e livros didáticos há pelo menos duas décadas no Brasil, uma vez que ler, do ponto de vista de uso da língua, compreende essa primeira dimensão em articulação com a dimensão do significado do vocábulo. Até aqui ler é tanto decodificar quanto entender o item decodificado em sua relação com o mundo das experiências, tanto concretas quanto da língua. Um próximo passo da leitura, em seu aspecto comunicacional mediado pela língua, é implicar o lido, presente no ato da leitura, ao seu nível sociocultural, ou seja, entender o que não é dito justamento pelo que é dito.

Quem disser que o procedimento de leitura é simples incorre em ledo engano, porquanto ler traz conhecimentos variados para o leitor precisamente porque os mobiliza por vias muito distintas. Quando alguém lê sua expressão facial isso quer dizer uma série de coisas, mas uma delas é certa: a expressão lida, bem como todas, são aprendidas socialmente e, por consequência, não são únicas. O tom de voz é lido (conferir o artigo de opinião “A era do tom: quando a forma vale mais do que o conteúdo”, publicado no Conexão Tocantins) somente se vários tons também se encontram como repertório formativo do leitor. A roupa, uma combinação de peças de vestuário, é lida de acordo com seu contexto de uso, já que é sabido que certos lugares são determinadores de indumentária. Ninguém vai à praia de terno, salvo em ocasiões muito singulares. Portanto, a leitura não é apenas um golpe de decodificação, é antes uma compreensão das determinações empreendidas em todos os processos comunicacionais, desde os objetos culturais até as experiências mais subjetivas.  

Diante da delimitação expansiva do ato de ler, que se volta para a intencionalidade de saber quais relações são estabelecidas com o objeto de leitura e todo o seu campo de atuação, a leitura literal é praticamente um “elefante branco”, pois não é que não existe, apenas pode significar uma limitação da leitura e toda sua gama de expressividade de sentidos. A leitura literal, que é profundamente restritiva, alcança tão-somente a palavra, a frase, mas não o texto e seu uso; alcança a roupa, a voz e a expressão facial, mas não as situações nas quais fazem valer as suas regras sociais. A leitura literal, portanto, revela-se como uma espécie de miopia interpretativa. Ao fixar-se exclusivamente no que está imediatamente visível, na superfície das palavras, no corte objetivo de uma frase, na materialidade de um gesto, ela desconsidera que todo ato comunicativo é, por essência, dialógico e situado. O que se perde quando se limita à literalidade? Perde-se a ironia que ressoa nas entrelinhas, a intenção que modula um silêncio, o contexto histórico que dá espessura a um símbolo. Perde-se, em suma, a textura da cultura e da interação humana, que é feita tanto de ausências quanto de presenças, tanto de ditos quanto de não-ditos. 

No campo da literatura, a leitura literal anula a metáfora, esvazia a alegoria e reduz a polifonia a um monólogo plano. Nas relações sociais, ela transforma a complexidade do comportamento em mera sequência de gestos desconexos, incapaz de perceber, por exemplo, que um mesmo sorriso pode ser cumplicidade ou dissimulação, dependendo do cenário e dos corpos que o habitam. Até mesmo na esfera do direito, onde a letra da lei parece reinar absoluta, a hermenêutica jurídica sabe que a aplicação justa exige a consideração do espírito da norma, das circunstâncias e dos fins sociais a que ela se destina. O maior perigo da leitura literal, contudo, talvez não seja o empobrecimento cognitivo, mas sua pretensão de autossuficiência. Ao acreditar que esgota o sentido no que é explicitamente formulado, ela ignora que a compreensão plena exige um movimento duplo: ir ao texto e retornar ao mundo, cruzar a letra com a experiência, confrontar o código com a vida. É um ato que demanda repertório, abertura ao outro e uma certa coragem interpretativa, a coragem de ler também os vazios, os ruídos, os vestígios. 

Entretanto, é crucial reconhecer que nem todos dispõem das ferramentas ou das condições para empreender essa travessia hermenêutica. A limitação à leitura literal pode derivar de uma formação precária, de um repertório cultural restrito, de diferenças cognitivas ou mesmo de circunstâncias existenciais que cerceiam o acesso a experiências mais amplas. Desprezar o leitor literal em nome de uma suposta superioridade interpretativa seria, assim, cometer uma dupla injustiça: primeiro, porque desconsidera as desigualdades que moldam nossas capacidades de leitura; segundo, porque reproduz a mesma rigidez que se critica. Não se deve ficar apenas na leitura literal, ela é um começo, mas não pode ser o fim do caminho. Eis o convite: ler além da linha, ler contra a linha, ler nas dobras do visível. Portanto, cabe o dever da empatia: honrar a leitura literal como ponto de partida possível, respeitar quem nela ancora seu entendimento do mundo e, sobretudo, trabalhar para que as pontes entre a letra e o sentido mais amplo estejam acessíveis a todos. Pois a verdadeira riqueza da leitura não está em superar o outro, antes, está em compartilhar, com generosidade, os múltiplos sentidos que tornam a comunicação possível. 

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.