Enquanto os olhos e a preocupação estão voltados para a Amazônia, a cana-de-açúcar, incentivada pelo crescimento dos programas de biocombustível no País, avança sobre outro bioma brasileiro: o cerrado. Estudo feito pela organização não-governamental Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) mostra que, nos próximos anos, deverão ser construídas 47 novas usinas de álcool em Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, em áreas de cerrado. As estimativas são de que, a cada ano, somem 22 mil quilômetros quadrados de cobertura vegetal de cerrado - boa parte para a agricultura e, nos últimos tempos, especialmente para a cana-de-açúcar.
A cana hoje já ocupa áreas que foram consideradas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) prioritárias para preservação e uso sustentável. Em 2006, durante oficina com técnicos do ministério e ambientalistas, o governo federal fez um mapa de regiões prioritárias. Dentre as definidas, estão áreas em Goiás, nos municípios de Goianésia e Barro Alto, que hoje já têm 40% (2,5 mil quilômetros quadrados) comprometidas com as plantações.
Em Mato Grosso, nos municípios de Aquino, Jaciara e Juscimeira, as lavouras já ocuparam parte do que deveria ser um corredor de biodiversidade nas nascentes do Rio São Lourenço. Em Minas Gerais, a cana-de-açúcar está instalada dentro de áreas apontadas pelo MMA como de prioridade "muito alta" e "extremamente alta" para a conservação , nos municípios de Lagoa da Prata, Luz, Arcos, Iguatama e Japaraíba.
Mais do que um avanço irregular, as plantações de cana no cerrado revelam uma dificuldade do governo de implantar um sistema de proteção em áreas que ele mesmo definiu como prioridade. Além da definição do mapa, até agora nada foi feito para dificultar ou proibir a plantação nessas regiões. Se mantiverem 20% de reserva legal nas propriedades, o exigido por lei para o cerrado, fazendeiros estão dentro da lei.
"O que a gente vê claramente é que há um aumento médio de 20% na área plantada por ano no cerrado. Há substituição de culturas e ampliação de áreas", afirma Nilo D?Ávila, assessor de políticas públicas do ISPN. A substituição de culturas - a troca de soja ou de áreas de pastagem pela plantação de cana-de-açúcar - não significa um problema menor. Essa soja e esse gado, lembra D?Ávila, estão sendo empurrados para outras área, inclusive as que o governo garante que não vão ser afetadas pelos biocombustíveis.
O cerrado, que abrange 2 milhões de quilômetros quadrados, faz conexão com a mata atlântica, a Amazônia e as áreas do Pantanal. Sua área inclui os Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Minas Gerais, sul do Maranhão, oeste da Bahia e norte de São Paulo.
Tem, ainda enclaves em Roraima, Amapá e extremo Norte do Pará. É considerada pelos biólogos a área de savana mais rica do mundo e guarda uma diversidade de flora e fauna quase tão grande quanto a Amazônia.
Apesar disso, a região não tem sistema de monitoramento como o da floresta amazônica, a ponto de só haver estimativas sobre o desmatamento na área. Projeções apontam para uma perde de 1,1% da cobertura por ano, o equivalente a 22 mil quilômetros quadrados. "O governo peca porque não há um sistema de monitoramento", afirma D?Ávila. "Nós não queremos dizer que não pode haver cana no cerrado, mas é preciso haver controle, um direcionamento para áreas já degradadas".
O Ministério do Meio Ambiente reconhece os problemas a serem enfrentados no cerrado. De acordo com Mário Cardoso, gerente de Biocombustíveis e Agronegócio da Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Sustentável do MMA, o zoneamento ambiental da cana-de-açúcar, que está sendo preparado em conjunto com o Ministério da Agricultura, é que dará os instrumentos para dificultar o avanço em determinadas áreas.
"Mais do que para a Amazônia, o zoneamento é prioritário para o cerrado, um local onde se tem muito mais dificuldade de controlar e onde o desmatamento é muito mais fácil de ser feito", diz Cardoso. Segundo o gerente do MMA, será difícil reverter a plantação em áreas já estabelecidas se a plantação estiver em situação legal. "Mas o governo pode desestimular providenciando melhores condições para os agricultores que se instalam em regiões permitidas pelo zoneamento", afirma.
Estadão