Depois da morte do casal de extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, em Nova Ipixuna (PA), as atenções do Estado e da mídia se voltaram para os conflitos agrários da região. Contudo, o problema da violência relacionada à questão agrária não se limita ao estado do Pará - espalhando-se, muito pelo contrário, por diversas fronteiras do agronegócio no Brasil.
No Projeto de Assentamento Santo Antônio-Bom Sossego e no Acampamento Vitória, em Palmeirante (TO), famílias sofrem com ações de pistoleiros, ameaças, incêndio de casas e roças e até assassinato, como foi o caso do trabalhador Gabriel Vicente de Souza Filho (assassinado em outubro do ano passado).
Na última quarta-feira (15), o barracão onde aconteceu uma reunião com as famílias do Projeto de Assentamento Santo Antônio-Bom Sossego foi incendiado à noite. Quem conta a notícia é Silvano Lima Rezende, 37 anos, agente da Comissão Pastoral da Terra Regional Araguaia-Tocantins. Silvano atua na região desde 1999. "Fizemos uma reunião para informar as famílias do andamento da situação às cinco horas da tarde, quando foi dez da noite o mesmo local foi incendiado", conta.
A Polícia Federal realizou na manhã de sexta-feira (17) uma operação para cumprir vários mandados de busca e apreensão, na sede de fazendas da região de Palmeirante e em alguns barracos de posseiros, em busca de possíveis culpados pelo incêndio do barraco em que a reunião comunitária havia sido realizada. Segundo a CPT, durante a operação da polícia, foram apreendidas duas armas de fogo, uma espingarda e um revólver.
Tiros e ameaças
Nos dois primeiros dias do mês de junho, as famílias relataram à CPT que
ouviram disparos de arma de fogo no mesmo local. Segundo os assentados, um
grupo de oito pistoleiros armados estaria instalado na sede da fazenda de
propriedade de Waldemar Bento da Rocha. A fazenda encontra-se na área do
assentamento, que se encontra em litígio, sendo reivindicada pelos assentados e
por Bento da Rocha .
Em 27 de abril deste ano, também foram efetuados diversos disparos, a partir das 17h, na sede da referida fazenda - expediente de intimidação que se alongou por várias horas noite adentro.
Segundo a CPT, cinco trabalhadores do assentamento e do acampamento estão ameaçados de morte. Estariam marcadas para morrer as seguintes pessoas: Noginel Batista Vieira, assentado desde 2003 no Projeto de Assentamento Santo Antonio; Valdeni da Silva Medeiros e Raimundo Nonato, assentados no mesmo projeto de assentamento desde 2008; e José Valdir Muniz e Divino de Jesus Vieira, acampados, desde 2010, no acampamento Vitória.
Apesar de não estar na lista de ameaçados entregues à ministra Maria do Rosário pela CPT (com mais de 1.800 nomes), Silvano tem recebido ligações com objetivo de intimidá-lo. "Estamos em situação de risco, eu recebo ameaças por telefone e recados. O fazendeiro Paulo Freitas, acusado de assassinar Gabriel [em outubro de 2010] já ligou algumas vezes para mim. No dia 3 de junho registrei um Boletim de Ocorrência. Daí começou uma série de ligações de números privativos para me intimidar", relata o agente da CPT.
Na entrevista concedida à Repórter Brasil na última quinta-feira (16), Silvano relata o clima de ameaças e medo vivido atualmente na região, demonstrando a necessidade de atenção urgente por parte das autoridades.
Os bispos do Tocantins divulgaram carta denunciando recentes ameaças
em duas áreas no município de Palmeirante, norte do Estado. Qual a situação?
O Assentamento está situado aproximadamente a 40 quilômetros da cidade de
Colinas do Tocantins, na TO-335, lado esquerdo. O Acampamento Vitória se
localiza no km 33, margem direita da mesma rodovia. Dezenove famílias do
acampamento reivindicam junto ao Incra a vistoria da Fazenda Santo Reis,
conhecida popularmente por fazenda "Brejão". Nessas áreas, já
denunciadas várias vezes, surgiram novas ameaças de morte contra trabalhadores
rurais.
A área que é hoje o Assentamento Santo Antônio-Bom Sossego foi grilada por três fazendeiros. Por ser área da União, em 2003, o Incra criou o assentamento que comportaria 19 famílias. Em 2005, famílias sem-terra ocuparam a área. O Incra, porém, inexplicavelmente, acabou reduzindo o número de famílias a serem assentadas para nove, por um acordo "verbal" com os ditos "fazendeiros", que ficaram com a área restante onde deveriam ser assentadas as outras 10 famílias. Um dos beneficiados é Waldemar Bento da Rocha.
Em 2010, os trabalhadores e a CPT denunciaram a exploração de madeira da reserva legal do assentamento, articulada pelos grileiros, pistoleiros e madeireiros da região. Em decorrência disso, a polícia militar e o Naturatins apreenderam equipamentos, veículo e madeira derrubada.
Em outubro de 2010, pistoleiros atearam fogo em barracos das famílias ocupantes. Em dezembro, pistoleiros ainda efetuaram disparos por sobre os barracos de palha e lona do Acampamento Vitória. A polícia militar foi acionada e encontrou cápsulas de arma de fogo nas proximidades do acampamento.
Todos esses fatos, intimidações e ameaças foram denunciados na delegacia de Palmeirante e encaminhados à Superintendência do Incra (TO), à Ouvidoria Agrária Nacional e ao Ministério Público Federal do Tocantins.
Desde abril deste ano, oito homens perigosos ficam na sede de um dos grileiros, fazendo ameaças à famílias, dizendo que vão limpar a área. Dá um sentimento de impotência muito grande porque fazemos denúncias e nada, não tem responsabilização dos culpados e nem ação das autoridades.
Queremos fazer uma denúncia pública para a Secretaria de Direitos Humanos
para pedir proteção. Estamos em situação de risco, eu recebo ameaças por
telefone e recados. O fazendeiro Paulo Freitas, acusado de assassinar o Gabriel
já ligou algumas vezes para mim. No dia 3 de junho registrei um Boletim de
Ocorrência. Daí começou uma série de ligações de números privativos para me
intimidar.
Uma das áreas em conflito é um assentamento (PA Santo Antonio), não uma
ocupação. Como isso acontece? Qual o posicionamento do Incra?
Em audiência junto ao Ministério Público Federal, Ouvidoria Agrária
Nacional e Regional, CPT e representantes dos posseiros, no dia 17 de novembro
do ano passado, o Incra se comprometeu a entrar com ação contra os 3 grileiros
e regularizar as 10 famílias que faltam. O juiz entendeu que é área da União
com projeto de assentamento.
Porém não teve nenhuma providência ainda. A justificativa do Incra para a
demora é o recesso de final de ano, a transição do governo federal e a falta de
recursos por conta dos cortes. Nós soubemos que em fevereiro deste ano, a
Superintendência do Incra fez o pedido ao Ministério do Desenvolvimento Agrário
[de verba para atender a demanda] e desde março o dinheiro está na conta do
Incra. Eu soube que hoje [quinta-feira, 16] está sendo feita a notificação para
os grileiros para se retirarem da terra.
A morosidade atrapalha e dá brecha para as ameaças e conflitos com pessoas
armadas. Um dos tiros passou próximo de uma das crianças. As mulheres e as
crianças estão muito assustadas porque muitas vão a pé para a escola, andam
cerca de 3 km.
Hoje o pessoal tem arroz, feijão, farinha, mesmo diante do conflito esse
pessoal tem o mínimo para sobreviver e eles não têm pra onde ir. Precisam da
terra. Eles têm ciência que não têm pra onde ir. E se alguém chegar a ser
assassinado, nós responsabilizaremos o Incra porque esse local já era
assentamento, terra da união, era para tudo estar certinho já.
Como o Estado tem agido para coibir esse tipo de violência?
A única coisa de concreto é um encaminhamento da Ouvidoria Agrária comunicando
as autoridades estaduais para que tomem providências. Mas não temos ação
concreta, segurança para as famílias. A Secretaria de Direitos Humanos só
priorizou Pará e Rondônia. Tocantins está fora do foco da proteção.
Como estão as investigações do assassinato do trabalhado Gabriel
Vicente de Souza?
As últimas notícias que tivemos é que não houve prisões. Não sabemos nem se as
investigações estão andando mesmo. O principal acusado, o fazendeiro Paulo
Freitas, está respondendo em liberdade por ser réu primário. E os dois
pistoleiros estão foragidos, não se apresentaram à Justiça, como fez Paulo. O
Ministério Público Federal do estado não tinha oferecido denúncia até 5 de
maio. A Ouvidoria Agrária está ciente e estamos cobrando. Na reunião de ontem
(15) surgiu a proposta de marcar uma audiência com o promotor de Filadélfia
(TO) para conversar sobre o caso e dar explicação para as famílias.
Qual a atuação da CPT nesses casos? Você sofre algum tipo de ameaça por
conta dela?
Nesses casos nós temos o papel de orientar as famílias de como proceder.
Informar e formar as famílias e mantê-las atualizadas. Ao mesmo tempo, somos
mediadores para fazer pressão para que as autoridades sejam mais céleres. Nós
buscamos fortalecer a luta, dar esperança, para dar condição mínima para as
famílias resistirem e continuar a caminhada, que é difícil.
Em alguns casos, principalmente de despejos, contribuímos juridicamente. Temos
uma parceria com um escritório de advocacia.
Além de fazer este trabalho, estamos juntos com as famílias e acabamos por
dar publicidade à causa, usando os meios de comunicação, acabamos mais expostos
e não tem jeito, sofremos ameaças sim, recebemos ligações estranhas, recebemos
recados diretos. Se o Estado fosse operante e eficiente provavelmente teríamos
uma menor participação, mas acabamos preenchendo esta lacuna. Trabalho árduo e
desigual, mas continuamos acreditando.
A partir do assassinato de Zé Claudio e Maria, no Pará, o tema da
violência no campo ganhou destaque na mídia nacional. Você acha que há uma
escalada de violência ou a situação apenas ganhou projeção?
A avaliação que fazemos é que existe um modelo de desenvolvimento adotado no
país, atrelado ao agronegócio, que por sua vez tem por objetivo avançar na
produção em alta escala, como soja, eucalipto, pecuária, cana, e isso tem
efeito nos pequenos produtores.
Nossa região tem muita terra pública da União, 62% de Palmeirante são terras da União e isso deveria ir para a Reforma Agrária e isso não é feito. É mais importante deixar a soja avançar, são diversos interesses econômicos envolvidos visando o lucro. E tudo isso gera uma situação conflituosa porque pessoas que cultivam a terra entram em embate com esse modelo de desenvolvimento, as famílias pobres, sem acesso a políticas públicas que teimam e resistem em suas terras para garantir o mínimo.
Tem uma diferença muito grande entre quem quer preservar a floresta e o
cerrado e quem quer lucrar com a sua destruição. O Banco do Brasil, da
Amazônia, BNDES acaba emprestando dinheiro pra isso [desmatamento].
O agronegócio vem como rolo compressor e aí acontecem tragédias. As autoridades
agem como se esses conflitos fossem casos isolados, mas não é. Quando a
tragédia já ocorreu, vem o Estado e diz que se fará presente. Mais trabalhadores
terão que morrer para o Estado repensar sua forma de intervenção? O Poder
Judiciário tem uma visão conservadora e reacionária, pautada pelo lado
economicista, e com isso as ações [movidas na Justiça] são intermináveis.
Os conflitos agrários no Brasil, de uma maneira geral, têm momentos de ápices.
Mas tudo isso ocorre diante da falta de ação do Estado.
Por que a região que inclui Pará, Tocantins e Maranhão é tão
violenta?
A violência se instala pela falta de desenvolvimento local, uma lógica que expulsa
as famílias. A grande questão é a concentração de terras e a falta de
investimento em iniciativas como a Economia Solidária e a agroecologia, em que
as famílias são protagonistas da mudança.
Há motivos para continuar na luta, mesmo diante das ameaças e do
cenário político?Mesmo diante dessa falta de motivação, existe uma grande expectativa de
transformação. Nós nos frustramos muito, mas mesmo diante disso, nós temos
companheiros no Brasil todo que nos apóiam. A CPT tem se mantido fiel a esse
projeto de caminhar ao lado das comunidades que não têm vez e não têm voz. Eu
queria destacar meus companheiros Raimundo Nonato Pereira, ameaçado de morte
também, o frei Xavier Plassat, o Pedro Antônio Ribeiro, a Valéria Pereira
Santos, o Samuel dos Reis Viana, e todos que atuam para construir um mundo
melhor.