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Opinião

Gleison Gomes

Gleison Gomes Foto: Divulgação

Foto: Divulgação Gleison Gomes Gleison Gomes

“Vida de negro é difícil, é difícil como o quê, eu quero morrer de noite, na tocaia me matar, eu quero morrer de açoite, se tu negra me deixar, vida de negro é difícil, é difícil como o quê, meu amor, eu vou m'embora, nessa terra vou morrer, o dia não vou mais ver, nunca mais eu vou te ver”. Em algum dia desses o caro leitor certamente já deve ter ouvido o trecho desta letra. Trata-se da clássica canção "Retirantes"¹ de Dorival Caymmi lançada no ano de 1976, especialmente para a também clássica novela “Escrava Isaura”.

Vida de negro é difícil, diz várias vezes o refrão. Acertadamente Caymmi contempla o que foi a trajetória de um povo igual a todos os outros, mas que, em determinados períodos da história passou longe de obter um tratamento digno e sofreu um processo de coisificação.

No caso brasileiro, a história relata que 30 anos após a chegada da frota de Cabral em terra brasilistrocou-se o uso da mão-de-obra indígena pela do negro, dando início a um processo que duraria oficialmente quase quatro séculos (358 anos para ser mais exato).

Eu falei quatro séculos de escravidão! .

Para que se tenha noção do horror, tenhamos em mente que nosso País tem cerca de 516 anos. Deste modo, quase 70% de nossa história foi marcada pela usurpação de direitos do negro.

A sua atuação na construção do país pode ser notada, por exemplo, no registro do Jesuíta André João Antonil no Século XVIII onde para ele “os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar a fazenda, nem ter engenho corrente”².

O quadro escravista trouxe ainda o desenvolvimento de um aparato violento. Uso de grilhões e correntes, tronco, giramundo, máscara de flandres, só para citar alguns. Ao tratar o negro como objeto, faz-se com ele o que bem entender. Compra-se, vende-se, usa-se.  

Mas engana-se quem acha que houve aceitação passiva. Resistência cultural e corporal. É o que se percebe quando ocorre a “sabotagem do trabalho, abortos provocados, assassinato de senhores e feitores, fugas, feitiçarias, suicídios, organização de quilombo e insurreições” (...)³.

Desses exemplos citados, vejamos o caso do quilombo. Lugar onde os escravos que fugiam se reuniam para resistir ao domínio dos senhores. O caro leitor, como bom conhecedor da história, certamente irá lembrar-se de Palmares, o mais famoso dos quilombos ₄ no Brasil, e das figuras de Zumbi e Ganga Zumba. São os mais conhecidos casos de resistência negra. Simbolicamente, tomou-se a data da morte de Zumbi, 20 de novembro, para o momento de reflexão chamado “Dia da Consciência Negra”.

Conscientia, palavra latina que designa estar ciente, com ciência, ou seja, conhecimento.  Momento de conhecer, relembrar e perceber.

Conhecer que em 1888 ocorreu a assinatura da Lei Áurea ₅, através da qual a escravidão no Brasil chegou ao fim, que trouxe a liberdade, contudo deixou o negro a Deus dará, não havendo políticas para amparar o recém-liberto.

Relembrar que dos 10 milhões de negros transportados para o chamado Novo Mundo, quase 4 desses milhões vieram para o Brasil ₆. Estes, chamo de sobreviventes. Viagem de vários dias em porão de navio, amontoados, condições precárias, alimentação escassa e doenças. O padre inglês, Walsh é um exemplo de visitantes que vieram ao Brasil e deixaram relatos interessantes, conforme Gilberto Freyre, cita: "A alimentação nos navios era apenas o bastante para manter os escravos respirando. Para conservar os fôlegos, vivos: um pouco de farinha e às vezes umas favas fervidas. Uma média de 4/10, de 800 escravos embarcados, supõe-se que morriam na travessia (...) Um copo d’água por três dias chegava para impedir a morte de um negro (...) para viagens às vezes de quatro meses (...) a viagem se fazia com os negros deitados ou acorrentados (...) Às vezes, uns negros por cima dos outros, formando duas camadas (...) (Freyre, 2010, pág 105-106).

Aos que chegavam à América, seguiam-se ainda os outros males da vida escrava. Freyre em seu trabalho₈ observou a grande quantidade de anúncios nos jornais da época referentes a donos de escravos seja oferecendo recompensas por quem encontrassem negros fujões, quanto querendo adquirir outros, e neste contexto havia também quem se ocupasse de buscar recompensas, um verdadeiro comércio.

Perceber que apenas um dia para a consciência não é suficiente, mais que se o temos vamos utiliza-lo da melhor maneira possível, e é mesmo dia de debater, expor aspectos culturais, reconhecer o papel exercido pelo negro até que se trate igual. Ainda mais num País onde o povo tem memória curta, sempre, relembrar é preciso.

A meu ver a data não sugere separação ou que somos tão diferentes, nem muito menos vitimizados, afinal, compreendemos que os tons da pele são apenas questão de melanina. Então, que seja mesmo dia a dia da Consciência Negra.

Notas e Referências

¹ Segundo pesquisas recentes a canção foi composta em parceria com Dorival Caymmi e o Escritor Jorge Amado. Sendo composta para a trilha da peça Terras do Sem Fim, adaptação da obra homônima do escritor baiano. (ver artigo “Quando Dorival Caymmi e Jorge Amado foram parceiros” matéria publicada no site tribuna da Bahia em 20-09-2012).

² Trecho citado na obra intitulada “Para uma história do negro no Brasil”. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1988. p. 9.

³ Ibidem. p. 11.

4 Um filme interessante sobre a temática e que é fruto da parceria do cinema nacional com o francês teve direção de Cacá Diegues chamado Quilombo , lançado em 1984.

5  O Brasil foi um dos últimos países a extinguir a escravidão. Portugal, em 1761 foi o primeiro.

6 Algumas pesquisas variam nessa quantidade, mas estima-se que fique entre 3,6 milhões e 5,5 milhões de escravos.

7FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Global, 2010. 4.ed.

8  Ibidem.

9  Parafraseando o poeta português Fernando pessoa, em seu poema “Navegar é Preciso”.

*Gleison Gomes é  Historiador e Professor da Rede Estadual de Ensino em Esperantina/TO.