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Opinião

Belchior morreu aos 70 anos. Minha lembrança de infância do compositor e cantor era a do sujeito excêntrico, com aquele bigode engraçado e uma voz anasalada. Talvez seja este o registro das novas gerações sobre a figura pública.

Me dei conta do tamanho de Belchior para a música popular quando, já adulto, ouvi “Fotografia 3X4”. Foi uma revelação para mim: a MPB, assim como nossa literatura, invariavelmente tratava o imigrante nordestino com um travo de coitadismo, de vitimização, que não encontram correspondência nos indivíduos que corajosamente deixaram suas casas naqueles anos passados. Ali estava o relato autobiográfico do sujeito que se afastou dos seus, com “lágrimas nos olhos de ler o Pessoa e ver o verde da cana”, em uma apresentação crua, adulta e honesta sobre como as coisas realmente ocorreriam nos tempos vindouros para quem seguia aquele caminho: o encontro com o preconceito, a fome, o medo e o desamparo, as desilusões. 

Após tornar-se reconhecido pelo grande público entre as décadas de 1970 e 1980, tenho um palpite sobre seu ostracismo nos últimos anos: seu discurso não anima plateias ou move militâncias. Não cantou os barquinhos na orla de um Rio de Janeiro idílico, que já não existia mais quando ele por lá desembarcou. Quando o regime ditatorial recrudesceu no país, ele estava contra o governo. Reestabelecida a democracia no país, não abraçou a esquerda para viver ou morrer, como Chico. Preferiu, como sempre, “andar sozinho”, pedindo que o deixassem decidir como viver a própria vida. 

Além disso, as verdades que ele desvela em suas canções são muito mais duras e amargas que as presentes na média das letras de seus contemporâneos. Associada à essa dureza de temáticas, e prescindindo de uma boa rede de relações com o mainstream da indústria fonográfica, era esperado que não atingisse (ao menos em vida) o tamanho dos onipresentes Tom, Caetano, Gil, Chico ou Milton, para citar alguns de seus pares. 

Meu convite é simples: escute Belchior. Vá direto aos seus álbuns Alucinação (1976) e Coração Selvagem (1977). Nos anos de 1980, esqueça os arranjos preguiçosos cheios de sintetizadores datados e ouça, por exemplo, sua versão de “Ouro de tolo”, superior à de Raul Seixas. Como um trovador de seu tempo, está tudo lá, em suas letras: o desespero, o medo de ser engolido pelo mercantilismo instaurado na indústria da música pop, o niilismo e o existencialismo experimentado nas leituras da juventude. 

O público provavelmente lerá nos próximos dias sobre as inúmeras dívidas que deixou, seu “sumiço” na última década e as matérias sensacionalistas decorrentes. Bobagem. Isso é apenas o rodapé de uma biografia que deveria ser exaltada por uma obra muito maior do que tudo isso. Para um sujeito que fez enorme sucesso nacional e ainda teve coragem de pedir que os outros saíssem do seu caminho (em “Comentário a respeito de John”), creio não ser possível contornar a ideia de igualdade que Belchior corajosamente cantou: todo mundo ficou, a seu próprio tempo, desapontado, apaixonado e violento. Exatamente como eu ou você.

*Paulo Constantino  é músico,  doutor em Educação pela Unesp Marília, onde é professor e atua na supervisão das escolas técnicas do Centro Paula Souza.