Começo pinçando uma parábola de Carlus Matus, o especialista em planejamento estratégico situacional que foi ministro de Salvador Allende no Chile:“não vê que não vê, não sabe que não sabe”.
João cai em um profundo poço de paredes verticais. Usa por horas a fio suas forças para escalar as paredes. Não consegue e dorme para recuperar as energias. Acorda e volta a fazer sua tentativa de subir a parede. Cai toda hora. O desespero aumenta. Obcecado pelo trabalho, não olha em direção à claridade externa abertura do poço. Dia seguinte, um desconhecido, ouvindo o barulho, aproxima-se da borda, vê a cena, busca uma corda e joga-a para João. Que não a enxerga. A pessoa grita: “pegue a corda”. E atira uma pedra nas costas de João. Que sente a dor e olha para cima. Irritado, vocifera: “não vê que estou ocupado?”
O desconhecido insiste: “pegue a corda e suba”. Furioso, João responde: “não vê que estou ocupado, trabalhando? Não tenho tempo para me preocupar com sua corda”. E recomeça seu trabalho.
Milhões de brasileiros, como João, caíram no poço e não sabem dele sair. Perderam a noção de tempo e espaço, não conseguem estabelecer nexo entre o ontem e o hoje. Uma camada de insensibilidade atrapalha seu senso de realidade. Densa névoa turva seus olhos. Milhões perderam o emprego, obrigando-os a fazer um bico aqui e ali para sobreviver. Sob o teto da incultura, não conseguem descobrir a causa do infortúnio, a razão das angústias, o motivo que esvaziou seus bolsos. Se há alguém responsável por isso são políticos, “cambada de ladrões”. Mas, para muitos, há gente santa, como Lula, que lhes deu Bolsa Família, acesso ao consumo, água do São Francisco, “minha casa, minha vida”.
E assim, na paisagem devastada da política, emerge o fulgurante “Salvador da Pátria”, Luiz Inácio, reverenciado por ter jogado dinheiro no bolso do povo, eternizado pela forma coloquial com que se comunica com as massas, longe das falcatruas que sujam o manto dos políticos. O mensalão, aquele escandaloso episódio de seu primeiro mandato, ah, isso é coisa dos políticos. A maior recessão econômica de nossa história foi fruto do descalabro do governo Dilma, responsável pelos milhões de Joões que caíram no poço. Mas isso passa ao largo do lulodilmismo. Explicar que a desgraça que atinge milhões de brasileiros é da conta Rousseff não entra na cachola popular. Tanto que MG deve agraciá-la com o cargo de senadora da República.
Triste é uma Nação cujos governos deixam milhões de cidadãos ao léu, vivendo sob o grilhão das grandes carências. Mais triste é constatar que a tragédia que se abate sobre o país foi plasmada nos próprios laboratórios do lulopetismo. Eis o preço que se paga quando um líder carismático tem o condão de enganar as massas com verve populista. Triste sina a nossa, de ver que o Brasil ameaça andar para trás cenários turbulentos forem confirmados nas urnas: a eleição de um candidato fantoche, que segue as diretrizes do padrinho, esse que “será o que quiser no governo do PT”, ou a escolha de um capitão, aplaudido como mito, cujo livro de cabeceira é “A Verdade Sufocada”, de Brilhante Ustra, coronel da ditadura, considerado um torturador.
Se isso ocorrer, seremos condenados a habitar um território assolado pela barbárie, rachado ao meio, com duas bandas destilando bílis e atirando uns contra outros. Voltar a conviver sob o mando de uma casta, que se considera vestal, a dominar uma máquina partidarizada e com quadros despreparados e comprometidos com o ideário do Foro São Paulo (guinada à esquerda dos países da AL), é fechar as portas a um futuro radiante. Ver na cadeira central do país um radical, cuja expressão afronta os valores da Cidadania, é viver sob a ameaça permanente de golpe em nossa democracia.
Há saída para fugir dessa trágica dualidade? Jogar uma corda para os milhões de joões que caíram no poço e tentar convencê-los a mudar os cenários. Sob pena de passarmos longa temporada no caos.
*Gaudêncio Torquato é jornalista e professor titular da USP, consultor político e de comunicação