O nascimento de uma criança é um momento sublime para uma família. Entretanto, o acontecimento pode se transformar em um momento de conflito no que se refere, por exemplo, ao direito da gestante em relação a escolha via de parto: se cirúrgico ou parto vaginal (natural). Em alguns caso, porém, essa decisão pode sair dos hospitais e consultórios e ganhar as cadeiras do Judiciário.
Recentemente, um caso no Reino Unido reacendeu a discussão sobre o tema. Um juiz da alta corte do país decidiu que uma grávida de 25 anos poderia ser secretamente sedada durante uma visita ao hospital para permitir que os médicos realizassem uma cesariana contra a sua vontade. De acordo com o jornal The Sun, a mulher seria chamada para o hospital para uma consulta de rotina, onde seria drogada por algum medicamento colocado em sua bebida e, posteriormente, encaminhada para o centro cirúrgico a fim de se realizar a cesárea. Caso ela não pudesse ir ao hospital, a equipe médica estava autorizada ainda a ir à casa da paciente, sedá-la secretamente ou contê-la à força, se necessário, para depois levá-la ao hospital e realizar a cirurgia. Para justificar a ação, o juiz alegou que a grávida não tinha condições de tomar decisões por conta de dificuldades de aprendizagem.
A mulher, contudo, deu à luz naturalmente (como desejava) antes que o plano, revelado há poucas semanas, fosse colocado em prática.
Até que ponto é possível respeitar a autonomia da paciente? Há limites?
Um outro exemplo, brasileiro, que envolve o tema da autonomia do paciente teve repercussão na mídia. Encontra-se no STF um Recurso Extraordinário, interposto com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, apontando violação aos artigos 1º, III; 5º, caput, incisos II, VI e VIII; e 196 do texto constitucional.
O processo envolve uma paciente que, em razão de doença cardíaca, foi encaminhada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a Santa Casa de Misericórdia de Maceió, a fim de realizar cirurgia de substituição de válvula aórtica. Mas, por ser testemunha de Jeová, decidiu submeter-se ao tratamento de saúde sem o uso de transfusões de sangue alogênico (sangue de terceiros).
A parte recorrente alega que a discussão dos autos cinge-se a saber se é legítima a recusa à transfusão de sangue no tratamento de saúde por paciente testemunha de Jeová. Se a paciente tiver uma hemorragia e precisar de transfusão de sangue no SUS, os médicos não poderiam atuar segundo a boa praxis. Se a paciente for a óbito, a responsabilidade será do médico? Novamente pergunta-se: qual o limite da autonomia do paciente?
Ainda na esteira da autonomia e decisões médicas, no último dia 16 de setembro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou novas regras para a atuação de médicos nos casos em que um paciente recusa algum tipo de tratamento. Pelo viés da Resolução Nº 2.232/2019, a escolha da via de parto “deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe e feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.
A resolução também permite que pacientes recusem procedimentos médicos desde que não haja risco para a saúde de terceiros ( como o feto, por exemplo) ou doença transmissível que, se não tratada, contaminará a outros.
Outra polêmica em torno do parto acontece com a discussão sobre uma nova lei , oriunda de um projeto de lei da deputada estadual de São Paulo Janaína Paschoal (PSL), que define que as mulheres poderão optar pelo procedimento cirúrgico independentemente de indicação médica. A lei sancionada recentemente pelo governo paulista combate a “ditadura do parto normal” e autoriza o a gestante usuária do Sistema Único de Saúde (SUS) a optar pelo parto cirúrgico a partir da 39ª semana de gestação. O texto garante o direito da mulher em receber analgesia no parto natural e optar pela cesariana, a partir da 39ª semana de gestação, mesmo que não haja indicação médica para isso.
A esse respeito, emanam críticas de entidades alegando-se que o ensejaria uma discussão técnica aprofundada sobre o momento do parto e a saúde da mulher e do feto. A deputada diz que sua intenção é defender a vida e a autonomia das mulheres em relação ao que chama de “obsessão” por parto normal. Interessante ressaltar que a OMS (Organização Mundial de Saúde) preconiza que o percentual de cesarianas ideal estaria entre 15% e, somente na rede privada de saúde no Brasil, tem-se uma taxa de 88% de partos através do procedimento cirúrgico. Com a aprovação da Lei, o percentual de cesarianas no SUS irá aumentar consideravelmente.
A decisão sobre a via do parto deve ser resultado de escolhas responsáveis. Por exemplo, a cesariana não precisa ser uma opção para a mulher que não quer sentir dor, pois é possível haver analgesia também durante um parto normal. A mulher, no entanto, precisa de informações para decidir.
A Constituição Federal garante a liberdade do cidadão. Aliás, a autonomia do paciente está entre os princípios da Medicina. Resta evidente, porém, que nenhuma escolha sem informação está cravada pela consciência das consequências. É importante esclarecer que, independente da escolha, a saúde e a integridade física da mãe e do bebê devem ser a prioridade.
A autonomia da mãe termina quando sua escolha possa causar danos ao bebê e, em nome do bebê, o Estado é chamado a intervir muitas vezes. A autonomia é um bem jurídico do ser humano, valor reconhecido pela legislação brasileira e que precisa ser tratado como tal.
*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA/FGV em Gestão de Serviços em Saúde, ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP), membro do Comitê de Ética para pesquisa em seres humanos da UNESP (SJC) e presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde